sexta-feira, 11 de março de 2011

Jornada Extraordinária


           


         Manhã de Sol. Teria sido só mais um bucólico amanhecer – não fosse a visão do voo da cotovia, ave dona de um dos mais belos cantos existentes entre o Reino Animal.
           Tive a oportunidade de mirá-la ainda próxima ao solo, enquanto dirigia-me  ao curral a fim de ordenhar as vacas que pertenciam ao meu tio. Eu morava na casa-grande  há quatro anos, quando ainda contava 12 anos de  vida.  O hábito diário não fazia com que a paisagem da fazenda perdesse seu encanto, mas sempre adquiria melhores olhares quando acompanhadas pela beleza do pássaro.
           Antes que pudesse abrir o portão do curral, fui instantaneamente seduzida pela ascensão da cotovia. Abandonei as tarefas às quais fui incumbida e desejei poder voar junto com aquela magnífica ave.
           Sua subida foi fascinante embora lenta. À medida que alcançava novas altitudes, ondulava-se ao vento, sem medo de que as correntes a desviassem de seu percurso original.  Corri para alcançá-la, meus passos quase tão leves quanto plumas, na tentativa de que sua insustentável leveza influenciasse a mim também.
           Dei por mim quando já havia percorrido, aproximadamente, uns quinhentos metros, sentindo-me aconchegada nas suaves asas da cotovia. Afastei-me rapidamente dos domínios da fazenda para adentrar nos territórios da fantasia. Mesmo que a realidade ali presente fosse incontestável. Respirei fundo, o ar purificou meus pulmões. Encontrei imensa dificuldade em acompanhar seu curso e sua velocidade, no momento em que ela subia a uma altura tão elevada que por pouco não fui capaz de enxergá-la. E essa seria minha eterna desilusão.
           A cotovia, em seu espetacular voo, descrevia curvas improváveis. Até que atingiu um ponto no céu, a partir do qual iniciou uma série de círculos perfeitos, e começou a cantar.
          Ah, que maravilha!
           Desejei fechar os olhos para apreciar melhor aqueles sons que nem o mais sensível compositor seria capaz de reproduzir com igual perfeição. Entretanto, não queria perdê-la do alcance de meus olhos. O voo e o cântico deveriam ser contemplados em conjunto, na mais perfeita harmonia.
           O Sol exercia um papel fundamental no que diz respeito à iluminação. Sua luz permitia que as cores das penas da ave não passassem despercebidas, tornando seu tom levemente acastanhado mais vívido.
           As copas das frondosas e esparsas árvores serviam de testemunha daquele instante tão especial.  A cotovia não cansava de subir, assim como eu não cansava de avançar pelos prados ricos em verde.
           Uma explosão de sentidos. Pés e roupas de baixo subitamente encharcados. O desnível e a possibilidade de um perigo iminente fez com que meu coração disparasse em batimentos amedrontados. Achei-me em um riacho que cortava o  campo, deixando que suas alegrias se esvaíssem em águas cristalinas, ainda mais claras devido à luz solar. Observei meu reflexo, deparando-me com uma versão boquiaberta de mim. Rugas e linhas de expressão que antes não estavam ali agora dominavam meu rosto, sem que eu desse permissão para que elas pudessem entrar. A preocupação que se originou desse incompreensível fato fez com que as rugas se evidenciassem mais. O tempo não deixa mensagens avisando que está vindo; ele é a própria mensagem. Embora viesse precocemente, encontram-se motivos de sobra para a sua visita. Constatei que, como resultado daquelas repentinas mudanças em minha aparência, tive a sensação de estar mudada também por dentro. Mais serenidade. Mais confiança. Mais maturidade. E – por que não? – mais tempo perdido. 
           Temi que aquela pausa fosse suficiente para que a cotovia se afastasse muito de mim, porém ela ainda pairava em meio ao azul celeste, sua primorosa moldura.  Quiçá, ela estivesse me esperando, com a fidelidade com a qual um animal de estimação acompanha o dono em suas breves caminhadas.
           Após eu continuar a seguir o caminho, a cotovia voou ainda mais alto do que eu imaginava ser possível. Logo, logo, alcançaria o espaço; admiraria, de perto, a beleza da lua e um pequeno vislumbre da grandeza do Universo.
           Transpus pontes curtas, estradas longas, terrenos tortuosos e vegetações densas, tudo sendo simultaneamente recompensado pela jovialidade do sorriso que mantive estampado em meu rosto ao vê-la no ar. Contudo, o tempo também era impiedoso: acelerou consideravelmente sua velocidade, tudo para não me conceder o prazer de continuar olhando-a.
            Até que houve um momento em que ela começou a perder altura. Sua descida foi rápida, como se sua imponência tivesse decaído e estivesse me dando adeus.  Embora nunca atingisse o chão novamente, aquela foi, para mim, a mais vertiginosa das quedas, anunciando uma lamentável perda de brilho. A ascensão é dura, a queda, simples. Senti pena ao presenciar tão melancólico instante. Instante esse que, felizmente, foi passageiro.
            Logo ela foi alçou voo rumo ao paraíso. Encantou-me durante mais alguns minutos; sua despedida foi inevitável. Inoportuna ocasião. Eu já havia sido cativada por seus inconscientes feitiços, de modo que já não restava mais nada dentro de mim. Vazia, vazia mesmo. Meu estado absoluto. E também envelhecida. Não importava mais dizer quantas primaveras eu havia acabado de presenciar, o certo é que elas seriam eternas.
            E o tempo passou, implacável. 
            Evaporou por entre meus dedos, assim como o sonho de voar com a cotovia, que já se encontrava cada vez mais distante de mim. Era a consequência de almejar coisas impossíveis. 
            Longos cabelos brancos repousavam em meus ombros, conciliando-se com as minhas já antigas companheiras rugas e olheiras.  E uma novidade, tão escassa: uma lágrima brotou, percorreu meu rosto e foi refugiar-se nas profundezas da natureza, a mesma que um dia conferira  à cotovia o mais pleno direito: o de decidir o fluxo de sua própria jornada extraordinária.
          

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