quinta-feira, 24 de março de 2011

Deixe a luz entrar


      As paredes acolchoadas que revestiam o quarto a sufocavam. Eram até piores do que a camisa-de-força que puseram nela, mesmo quando não houve maiores protestos de sua parte. Com o tempo, perdera a habilidade de reivindicar sua liberdade, pois tinha aprendido, sozinha, que tal atitude só forneceria aos outros mais evidências de sua suposta loucura.
      Mas ela não era louca.                       
      Não era.
      Queria poder gritar aquilo aos quatro cantos do planeta, ainda que tivesse consciência de que aquilo só faria piorar sua situação.
      Limitou-se a fitar um ponto qualquer no teto do cômodo.
       — Até o mais sensato dos mortais enlouqueceria vivendo aqui...
       A voz neutra não a assustou, embora não houvesse ninguém no quarto junto dela.
       — Concordo em gênero, número e grau — a resposta dada, seca como um deserto, parecia ter sido o cadeado que lacrava todas as possibilidades de continuidade ao diálogo pré-estabelecido.
       — Não sente vontade de sair? — a pergunta em retorno era a chave.
       Ela soltou o ar, desejando que o gesto libertasse todas as angústias presas em seu coração. 
       — Já tentei, mas...
       — Não foi isso que eu perguntei — a voz interrompeu bruscamente — Quero saber se já sentiu vontade de sair daqui.
       O verbo querer empregado no tempo presente atribuía maior importância ao desejo da voz do que a informação a ser dada em si.
       — Ainda sinto — sua voz tornava claro seu estado de quase transe.
       — E o que acha que está fazendo aqui?
       — Eu não acho nada! — ela retrucou, enquanto procurava sentar-se em uma posição confortável sem o auxílio dos braços.
       —  Eu não acho nada! — a voz arremedou.  Não tem vergonha de não ter pensamentos próprios? E as suas convicções? Onde estão?
       — Não conseguiram atravessar a porta de ferro da entrada. Não percebe? — ela fez um gesto com a cabeça, indicando a porta. 
       — Sim, muito claramente.
       — E então?
       — E então o que?
       — O que vai dizer a respeito dos meus “pensamentos e convicções”? — ela apertou os dedos por baixo das amarras frouxas da camisa, pretendendo representar as aspas. Mas era provável que o (a) autor(a) da voz conhecesse o tom que empregava.
       —  Deixe isso para lá.  Mas, então, conte-me...  Por que veio para cá?
       — Não estou a fim... Aliás, se eu te contasse, você desapareceria para sempre... E eu não quero ficar sozinha novamente... Afinal de contas, quem é você? É alguma merda de psicólogo dessa porra de clínica?! 
       A resposta não foi imediata. Parecia que seu interlocutor avaliava a qualidade de sua fala, no momento em que cogitava algo razoável para dizer. 
        — Diga-me: Acreditas em Deus?
        Ela gargalhou alto. 
        — Oh, sim! "O Senhor é meu pastor e nada me faltará". O célebre e apreciado Salmo 23. É isso que quer que eu diga? Eu posso recitar cada versículo da Bíblia, não que isso me torne alguém melhor. As finíssimas e áureas páginas do Livro Sagrado foram suficientes para constituir minha máscara por muito tempo... Mas agora, não é mais. E você, por que acredita? 
         — Não me lembro de ter dito que acreditava... E você nem respondeu minha pergunta. Sim ou não?
         — Isso não importa... Só digo que esses questionamentos clichês não me agradam. 
         — Não. 
         — Não o que? 
         — Não sou nenhuma merda de psicólogo dessa porra de clínica. 
          A jovem sorriu enviesado. A voz não hesitara em reproduzir seus palavrões. 
          — Menos mau. 
          — Sim. 
          — Sim o que? — ela bufou e revirou os olhos — Você já está começando a me irritar, sabia? 
          — Eu acredito em Deus. 
          — Você é bem lerdo para responder as minhas perguntas... E então, por que acredita em Deus? Por que seus pais desde pequenos o forçaram a isso? E você simplesmente aquiesceu? 
          — O que te faz pensar que eu sou um homem? 
          — O fato de que você é um idiota patológico, o pior tipo! 
          — Sim. 
         Ela riu prazerosamente. 
          — Se é assim... Quem sou eu para discordar? 
          — Eu só estava respondendo a sua pergunta. Sim, em parte é verdade... Mas... Depois... Eu aprendi a acreditar em Deus. 
          Pausa. 
         — Há quanto tempo está aqui?
         Ela se recostou na cadeira e resmungou. 
         — Há tempo suficiente para odiar este lugar... 
         A voz embaraçou-se com a resposta dada pela jovem. 
         O ponteiro do relógio moveu-se cinco vezes. 
         Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac Tic-tac. 
         — E os seus amigos? — a voz vibrava como o som de um tambor na mente da menina, como se estivesse amplificando, ao mesmo tempo, o ruído desagradável dos segundos imortais.  
         — Eu não tenho... Não mais...
         — O que eles pensavam de você? — as dúvidas inúteis da voz tinham este grande defeito: eram contínuas, incessantes, impertinentes...
         — Estou pouco me importando com isso...
         — Eu amo os meus amigos. Não sei o que seria da minha vida sem eles...
         Ela deu de ombros.
         — Eu não te perguntei nada...
         — E eu não necessito de sua aprovação para dizer algo. Já recebi minha carta de alforria, muito obrigada. 
         Ela permaneceu longos segundos sem abrir a boca. Visto que o diálogo poderia estar perdido, a voz tentou:
         — Na verdade, não interessa muito o que eles pensam ou pensavam de você. Só aquilo que você acha de si mesma pode te conduzir ao invejável sucesso ou ao irrevogável fracasso. As palavras dos outros são grãos de areia frente às imponentes falésias, como aquelas que você via quando viajava para o litoral com seus tios... 
         — Como sabe disso...? — a jovem estava boquiaberta, quase atingindo a inabilidade de raciocinar.
         Ausência de sons por mais uns inexpressivos instantes. 
         — E os seus pais? — a voz fugira da indagação da outra. 
         — Meu pai é um inútil desgraçado... E a minha mãe... Bem... Ela não gosta de mim.  
         — Como pode ter certeza disso?
         — Porque eu a matei, então, ela deve me odiar... — ela nunca constatara o impacto que aquela frase causava em seus receptores. 
         E nem a voz se sentira mais incomodada.
         — É por isso que veio para cá? 
         — O que você acha, imbecil?!
         — Eu não acho nada! 
         A frase já havia sido dita, minutos antes. E não seria de seu gosto que a conversa tivesse seu rumo alterado ou, pior ainda, regredisse. Ela riu fracamente. 
         — Tem uma bacia d'água em frente a cadeira onde você está sentada, não tem?
         Ela se esticou para a frente a fim de confirmar a existência do objeto. 
         — Tem sim.  — ela disse, impaciente e entediada.
         — Você pode ver seu reflexo através da água. Ande até lá e faça isso. 
         Ela cumpriu às ordens, submissa. 
         Observou sua imagem refletida na superfície límpida da água, que oscilou um pouco quando ela se aproximou, devido aos seus passos fortes e decididos que colidiram contra a mesa na qual a bacia fora posta. Era quase como ver um filme em uma televisão cheia de chuviscos. Uma comparação reconhecidamente empobrecedora. 
         — Você sabe quem sou eu?
         Pôde compreender tudo, enfim. 
         Os movimentos de seus lábios encontravam-se perfeitamente sincronizados com o que a voz dizia. Entretanto, aquelas palavras não vinham de dentro dela. Aparentavam ter sido transformadas em vapor. 
         Estavam espalhadas pelo quarto. 
         Em todo lugar. 
         — EU SOU VOCÊ. 
         Seu sangue congelou. Os ruídos produzidos a partir daquela fala reverberaram pelo minúsculo quarto. 
         — Tire essa sua ridícula camisa-de-força. Eu sei que ela está bem frouxa em você. Tenho certeza de que isso foi feito propositalmente... — sua tentativa de riso converteu-se numa horrenda carranca. 
          Assustada, ela seguiu prontamente à instrução dada, atirando a camisa-de-força ao chão. 
          — Pegue seu estilete. 
          Ela tentou negar que estivesse escondendo tal objeto. 
          — Eu sei que você o tem. PEGUE-O. 
          Ela esticou a mão e retirou-o do bolso da calça, ainda relutante. Havia tido um vislumbre, uma vaga ideia do que a voz a obrigaria a fazer. Fechou os olhos intensamente para evitar que as lágrimas caíssem. Viu a lâmina suja do estilete, ainda impressionada por ninguém tê-lo apreendido, e nem mesmo desconfiado de que ela o possuía. Parecia que tudo tinha sido bem planejado, desde o início. 
         Desde o maldito início. 
        Claro, aquilo nada mais era do que um complô! Esquema traçado com perfeição, calculado nos mínimos detalhes. 
         Todos queriam assistir ao espetáculo de sua aniquilação. 
         Sua auto-aniquilação. 
         — Já sabe o que fazer. — a voz soou aterradoramente soturna. Como se a voz estivesse rouca. Talvez porque aquelas seriam suas últimas palavras... 
         O vermelho foi expulso de seu corpo num ímpeto, desenhando no acolchoado até então imaculado uma série de pontes ardentes e frágeis entre a vida e a morte.  A primeira distanciava-se a cada segundo passado, enquanto que a segunda preparava-se para recepcioná-la do outro lado. 
         Sua energia esvaía-se cada vez mais, e ela reservava sua triunfal queda para o Grand Finale  da apresentação. 
         Deixe a luz entrar enquanto o Sol está tinindo lá fora...  — ela pôde se lembrar da canção favorita de sua mãe. 
         Contudo, o tempo é impiedoso. Arrependimentos tardios não são válidos. 
         E ainda restariam aqueles hipócritas profissionais da saúde! Nem mesmo eram dignos de  serem chamados de tal forma. Ainda assim, devia considerá-los, antes que deixasse a luz entrar. 
         Ao menos, uma mensagem. 
         Uma singela despedida.
         Antes que a cor rubra predominasse no quarto...
         Só pelo seu simplório ato de pensar no próximo, rajadas de luz iluminaram o cômodo, apesar da falta de janelas.  
          E o seu recado, naturalmente, estava mais do que pronto para ser lido, já que fora escrito à custa de dores dilacerantes. 
           Vejo vocês no Inferno... 
          
           
     
         


          



      

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