Por fora, imponente e majestosa. Catedral adentro, e seus caminhos desemaranhavam-se em uma série de degraus de pedra, conduzindo-me para um recanto de paz quase mórbida, em meio às ruínas internas e consecutivas geradas por transtornos notadamente urbanos.
O cheiro úmido, misturado ao mofo, não era tão desagradável quanto parece ao olfato, nem aos olhos que anseiam por palavras fartas de significado e que enchem nossas bocas com sons espectrais; nem aos ouvidos, que catam sopros afinados dentre os ruídos rascantes, com os quais muitas vezes se confundem.
Meus pés tomaram as ações do resto do corpo, e puseram-se a subir a escada cinzenta, cada passo, uma libertação. Ou, pelo menos, representava metade do caminho para ela. Primeiramente, a libertação. Posteriormente, a liberdade.
As paredes de altura incalculável me protegeram dos raios de Sol, precocemente impetuosos àquela hora da manhã. Eram revestidas de belíssimas pinturas, por toda parte, impecavelmente coloridas, cada traço revelava fielmente uma emoção naqueles rostos inalcançáveis.
Deus não nos fez a sua imagem e semelhança?
Os inúmeros bancos de madeira não serviam de suporte para ninguém. Era como se toda a catedral houvesse sido transportada para outra dimensão, e não existissem mais humanos ali além de mim.
Sentei-me em um deles, visualizando diretamente o altar e os enormes vitrais coloridos, que remetiam à Idade Média, tão distante do mundo contemporâneo e, ainda assim, tão perto. Sempre achei a arquitetura das catedrais fantástica, um dos poucos sinais de que podemos estar próximos do Criador.
Iniciei um diálogo, mesmo que estivesse além de meu receptor.
— Senhor, pode me ouvir?
Não houve resposta.
Segui em frente.
— Eu sei que muitas vezes eu não me dou ao trabalho de vir a Sua casa para Lhe falar algo, que geralmente eu faço isso por conta própria, sem ninguém, em meu próprio canto. Mas dizem que o Senhor só estará em algum lugar quando houver mais de um, o que quer dizer que nunca está presente quando eu rezo. Bem, eu vim para cá e não tem mais ninguém além de mim, o que provavelmente significa que não estás aqui também. Entretanto, algo me diz que devo continuar...
“Não estou aqui para Lhe pedir algo, como todos fazem. Aliás, eu não sei como o Senhor consegue atender a tantos pedidos! Eu sei que nem ficam satisfeitos e que o Senhor só atende a aqueles que realmente merecem. Não sei se isso é decidido pelo nível da Fé ou pela vontade de transformar a vida para sempre...
“Na realidade, eu vim aqui para agradecer.
“Agradeço pelos sábados de manhã. Não existe nada melhor do que poder se revirar na cama por um pouco mais de tempo, antes que a necessidade de se levantar e se desvencilhar do ócio grite pelo meu nome desesperadamente. É reconfortante espreguiçar-se protegido pelos cuidados quase sufocantes dos cobertores sobre a pele.
“Agradeço por ter amigos, e por eles serem tão fiéis a mim. Eu não sei se o Senhor os pôs em minha vida intencionalmente, ou se foi mais desses ‘acasos’. Se bem que eu não acredito plenamente que alguma coisa aconteça sem fundamento.
“Agradeço pelo grande círculo policromático que é a natureza. Não seria estranho se a neve fosse cor-de-rosa e as matas, arroxeadas? As nuances trabalham em perfeita harmonia. Eu não seria capaz de escolhê-las melhor.
“Agradeço por ter me concebido visão e audição perfeitas. Não me sentiria completo se não pudesse ouvir às minhas músicas e ler cada palavra que foi escrita nos livros, da maneira como foi imaginada.
“Agradeço pela madrugada, como se a transição da noite para o dia me trouxesse o nascimento de novas ideias. Elas são essenciais para mim.
“ E, por último, agradeço a capacidade de ser grato.”
Até então, eu permanecera com os olhos fechados, na esperança de atingir um estado de total concentração. Lentamente, abri-os novamente.
Os raios de Sol penetravam através dos belíssimos vitrais daquela catedral há muito submersa. Iluminavam não só meus cabelos, evidenciando os tons fortes de louro, mas também minha mente, como se, de repente, eu tivesse encontrado a resposta para uma pergunta há muito tempo feita.
Sim, Ele estava lá.
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