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Lavacourt: Sunshine and Snow, 1879-1880 National Gallery, London, de Claude Monet |
O homem acorda ao toque estridente do despertador, que anunciava o início de cada manhã. Parte da rotina. Levanta-se ainda carregando nas costas o peso da fadiga, resultado de noites mal dormidas. Sente o sabor amargo de seu hálito, perguntando-se se havia esquecido de escovar os dentes na noite passada. Vê através dos vidros embaçados da janela entreaberta. Não, os vidros não estão sujos. É o tempo mesmo e a insistência das gigantescas nuvens com a enfadonha mania de cobrir o azul do céu tão bonito e o brilho sonhador e ofuscante do Sol. A contragosto, levanta-se da cama e calça os chinelos de pano. Embora a maciez sob seus pés fosse agradável, não era estimulante para o princípio de mais um dia de trabalho. Se dependesse de sua vontade, permaneceria na cama até meio-dia. E, se ficasse na cama até meio-dia, seria demitido. E, se fosse demitido, morreria de fome.
Cambaleante, caminha até o banheiro. Abre a torneira e permite que a água fria escorra por entre seus dedos cálidos. Com as mãos em formato de concha, abriga um pouco do líquido para lavar seu rosto. Gostaria que aquele gesto lavasse também a sua alma.
Dirige-se até a tábua de passar roupa, no meio da pequena lavanderia de seu aconchegante apartamento. Seu uniforme vermelho e dourado jaz sobre a mesa, limpo e passado. Pequenos amarrotados não lhes passam despercebidos. Não se atreve a deixá-los sobreviver e denunciar seu descuido para aqueles que o viam diariamente no hotel; muito menos para os hóspedes, que o avistariam uma vez em suas vidas e, depois, nunca mais.
Penteia os cabelos grisalhos com a mesma seriedade que um importante homem de negócios. Faz a barba: está impecável. Limita-se a uma xícara de café e dois cubos de açúcar, por favor. Encontra-se na padaria em frente ao seu local de trabalho. Observa atentamente o corre-corre daqueles pobres escravos alforriados. Sente os olhos marejados, um tímido choro para os outros e, quiçá, para si mesmo. Uma homenagem aos seus esforços, cada vez que enfrenta o mundo que persiste em abatê-lo.
O resto dos hábitos é mecânico. Não possuem qualidade relevante para que possam ser relatados. Isso não iria agradar o senhor. Afinal, este conto também pertence a outro homem, igualmente vivido, amigo seu, a quem fui incumbida de contar a estória. Um lembrete de uma tarde memorável a ambos.
Já no saguão do hotel e devidamente arrumado, põe-se em posição de serviço. Logo, localiza um velho que devia ter sua idade, e que acabara de entrar. Seus olhos semicerrados vagavam pelos quadros harmoniosamente dispostos do saguão. Parecia perdido em suas próprias lembranças, um olhar indecifrável e, ao mesmo tempo, aparentando ser puramente melancólico. Vestia-se com elegância. Cheirava a bergamota, um aroma fresco e vívido, talvez uma maneira de perder alguns anos que gostaria de poder esquecer.
Com uma das mãos atrás das costas, fitava algo além da capacidade de qualquer um ali presente. Tinha ares de aristocrata, apesar de pisar encurvado. Entorta a boca, como se sorrir fosse um gesto imprudente.
Não carregava bagagens e nenhum vestígio de que pretendesse permanecer alguns dias ali.
— O senhor necessita de algo? — perguntou o antigo funcionário, subitamente incomodado com o sujeito.
— Olá — o outro respondeu, ainda sem olhá-lo nos olhos, enquanto uma rajada de vento sacudia os ramos das árvores do lado de fora do prédio. — Sou o senhor Álvares.
O empregado pigarreou. Voltou-se para frente, preparado para auxiliá-lo.
— E então, senhor Álvares, o que deseja?
Álvares fez uma longa pausa antes de abrir a boca. E, quando o fez, novamente escapou ao questionamento.
— Diga-me, senhor, conhece este quadro?
Ele apontou para uma das belíssimas pinturas penduradas na parede.
— Sim, é de Claude Monet — disse, orgulhoso ao ver-se útil com seus conhecimentos a respeito de Arte. Sua verdadeira paixão era estudar sobre o assunto. Mas, como poderia passar essas informações adiante? Quem daria crédito a um idoso, simples funcionário de um hotel? Normalmente, só falava quando indagado. Entretanto, naquele momento, sentiu que poderia ir mais além.
— Monet nasceu em Paris, novembro de 1840, e faleceu em Giverny, dezembro de 1926. Foi o mais célebre dentre os pintores impressionistas.
Álvares virou-se para ele, genuinamente maravilhado. O fulgor de seu olhar demonstrava reconhecimento.
— Vejo que tem uma cultura bastante ampla... — e pôs-se a observar as imagens novamente.
O silêncio imperou entre eles, por brevíssimos instantes.
— Desculpe incomodá-lo, mas o senhor poderia me dizer o que desejas aqui? — o velho insistiu.
— Será que eu poderia ... — Álvares se deteve, procurando encontrar palavras adequadas. Até que finalmente parece encontrá-las —... Dar uma olhada no jardim?
O outro franziu a testa, intrigado com a qualidade do pedido. Porém, decidiu atendê-lo.
— Naturalmente. Acompanhe-me, por gentileza. — ele indicou o caminho, erguendo o braço direito.
Álvares seguiu-o, sem pronunciar sequer uma palavra. Os dois desceram os degraus de pedra da entrada e percorreram um estreito caminho, que os conduziu até as frondosas árvores do jardim. As majestosas flores, amorosamente cultivadas ali, iluminavam os corações. O Sol já não fazia falta.
Em meio a tantas rosas, amores-perfeitos, narcisos, margaridas, violetas e crisântemos, o chafariz se sobressaía, enriquecendo ainda mais a beleza do jardim.
Álvares contemplava sua imponência, admirado. Acomodou-se num banco, próximo a um enorme carvalho. Fez um gesto, convidando o outro homem a se sentar.
Desassossegado, o empregado olhou para os lados, verificando se havia outro funcionário à espreita, pronto para dedurá-lo por descansar em pleno serviço. O jardim, àquela hora da manhã, encontrava-se deserto. Sentou-se ao lado de Álvares, ainda sem ter muita consciência do que estava fazendo.
— Sabe, meu amigo, tenho algo a dizer-lhe — o nobre sentia-se muito à vontade, apesar de falar com um completo estranho. — Meu pai era dono deste hotel...
— Verdade? — o outro fingiu interesse. Mas, em sua mente, as dúvidas ainda reinavam: o que aquele homem queria? O que estava fazendo ali? Quem era ele?
— É... — Álvares suspirou — Ele amava esse lugar... Mais até do que a mim, ouso confessar.
O empregado arregalou os olhos, sob o impacto da revelação.
— Ele esperava que eu continuasse com os negócios da família e prosperasse. Muito. Dar origem a uma cadeia de hotéis... Como esses IBIS e Hiltons da vida...
O outro não era idiota para não constatar que a história não terminara bem. Permitiu que Álvares prosseguisse.
— Assim que ele morreu, não pestanejei antes de vender o hotel. Eu odiava esse lugar, que enfeitiçara meu pai, tomando-o só para si. Reconheço que meus sentimentos não sofreram grandes mudanças até hoje...
O funcionário do hotel não fazia a mínima ideia do que dizer. Álvares tomou a palavra, de repente.
— O senhor tem filhos?
Ele suspirou, visivelmente angustiado.
— Mágoa...
Álvares franziu o cenho, espantado, enquanto procurava por seu reflexo nos olhos do outro.
— Os filhos são uma mágoa para o senhor? — foi a única conclusão a que o velho foi capaz de chegar.
— Não, não... Guardo mágoa de... Nunca... Tê-los tido... — seus olhos espelhavam o céu nublado.
— E então? Por que não os teve? — Álvares desejava ardentemente a resposta. — Se é que eu posso saber...
— Porque...
— Porque... — o outro repetiu, incentivando-o a falar.
— Porque... Eu não tenho nada de grandioso para contar a eles... — o empregado revelou, numa frase só, voz embargada.
Álvares fora surpreendido pela ingenuidade sincera da resposta. Não guardava uma reação consigo. Optou por ficar calado, pensando.
— Eu não sei se o dinheiro traz felicidade, mas, com certeza, a felicidade não traz dinheiro... Cedo ou tarde eles seriam levados pelas coisas mundanas e não dariam mais valor aos sentimentos que desenvolvera por eles... E eu seria só mais um no meio da multidão... Existem grandes conflitos dentro de nós mesmos... Entre ser uma pessoa feliz e ser reconhecido por todos por ter feito algo notável ... Às vezes eu penso que não é possível ter os dois... — seus olhos castanhos demonstravam tristeza.
Álvares ainda mirava-o, atônito. Nunca, em seus setenta anos de vida, ouvira palavras tão profundas quanto as que aquele homem acabara de articular. Não eram vogais e consoantes soltas; cada letra escondia emoções sublimes e manifestava preciosa sabedoria de vida.
— Eu gostaria de ter podido fazer algo esplêndido — Álvares quebrou o silêncio — Antes... — sua voz falhou — ... Antes de morrer.
— Morrer em vida não é nada aceitável... É o que acontece com muitas pessoas e elas mal notam isso — ele inclinou-se para a esquerda, até ficar frente a frente com Álvares. — Eu quero dizer que o pior é quando se morre ... Aqui. — ele apontou ostensivamente para o próprio coração.
Álvares subitamente sentiu que desaprendera a falar. Não há resposta à altura de tão belos sentimentos expressos por aquele que é pobre de ouro, mas rico em virtudes. Ele soubera resumir numa só frase a consternação que levara uma vida inteira para interpretar. O que adiantara ter status social, ao ganhar tanto com a venda do hotel e, posteriormente, construindo uma carreira brilhante como advogado? Apesar disso, Álvares sentia-se incompleto. Ao contrário do empregado do hotel, ele fizera coisas grandiosas em sua vida, mas não tinha ninguém com quem compartilhá-las.
Solitário havia sido até então. Finalmente, depois de anos de busca inconsciente, encontrara a mais bela verdade do mundo: o amor.
Alguns dias mais tarde, o homem recebe uma carta de um dos outros funcionários do hotel, seu amigo de longa data. No envelope cor creme, um nome destaca-se:
Sr. Álvares
Imediatamente, o velho começa a rasgar o envelope e quase não consegue segurar a carta nas mãos, tamanho anseio.
Lê pausadamente, temendo que seu coração não aguentasse até o final.
Caro senhor,
Desculpe por nunca ter perguntado seu nome. No momento em que considerava escrever esta carta, pensei na grande dificuldade que teria em entregá-la ao senhor. Mas logo me ocorreu que, no hotel, não devem ter muitos funcionários de sua idade, se me permite dizer. Porém, se está lendo estas palavras, significa que tudo deu certo.
Acho que nunca poderei expressar plenamente o quanto sou grato ao senhor. Obrigado por me mostrar o caminho certo para o jardim. Obrigado por dedicar a mim alguns minutos do seu tempo, minutos esses que tiveram o poder de alterar o curso de minha vida.
Naquela manhã de junho, só tentava me libertar de uma mágoa passada. Buscava entender o que tinha de tão especial naquele hotel, por que meu pai venerava tanto aquele lugar. Então eu percebi que, talvez, minha amargura hoje fosse resultado do que eu vivera antes. Meu pai, sim, fez muitas coisas grandiosas e, entretanto, nunca se entregou ao prazer de contar uma história para que eu pudesse dormir. E muito me impressiona a sua serenidade, apesar da vida que leva. E eu, que sempre tive tudo, e, no entanto, sentia-me tão inacabado.
Até agora.
O senhor quer saber por que eu recorri justamente àquele quadro de Claude Monet? Este pintor era o favorito de meu pai. Assim que vi o quadro que se revelava tão majestoso na parede, percebi que aquele fora mantido como uma homenagem a ele. Ou talvez tenha sido mera coincidência. A questão é que meu pai possuía um quadro idêntico àquele. Só que era original. Para dizer a verdade, minha família sempre foi muito rica, possibilitando que meu pai investisse na área que fosse de seu agrado, embora não rendesse lucros mais tarde. O que, felizmente, não aconteceu.
Antes de vender o hotel, mantive-me firme na decisão de ficar com o quadro. Hoje este me traz bons frutos. Digo-lhe que acabei de leiloá-lo e, com o dinheiro que consegui, pude ter centenas de filhos. Eu só achei a peça que faltava para o quebra-cabeça por sua causa. Sim, você estava certo: morrer em vida não é aceitável. Sorte que fui capaz de encontrar mais uma razão para viver.
Nunca estive tão feliz em minha vida. Eu, que criticava tanto meu pai, acabei tornando-me como ele. Mas ele tinha seu motivo. E, agora, eu tenho os meus.
Peço-lhe, por favor, que venha visitar minhas crianças e a mim também. O endereço da casa de caridade está dentro do envelope, enrolado no papel de carta. Tenha cuidado ao abri-lo.
Nada disso teria sido possível sem você. Vou ajudá-lo quando precisar, assim como o senhor me ajudou agora.
Tenho a honra de chamá-lo de MEU AMIGO.
Um abraço tão maravilhoso quanto a vida,
Sr. Álvares
Maravilhoso...um otimo texto.Parabens!!
ResponderExcluirMuito obrigada pelo elogio
ResponderExcluirTudo de bom para você!
;D