sábado, 12 de fevereiro de 2011

Uma festa perdida no Cosmo





      Feel  the fire burnin' (burnin')
      Hear the love callin' (callin')
      I can see it comin' (comin')
      Can you feel it in the air ? 

                                                                                         (TV Rock - In the Air) 

       O edifício vibrava ao som abafado pelas batidas extasiantes e repetitivas de música eletrônica, enquanto era vagarosamente devorado pela madrugada quente de verão. As luzes coloridas emanavam do salão, arrastando-me sedutoramente para seu mundo fútil sustentado por aparências. 

     Levei o copo d'água até a boca. O líquido gelado escorreu pela garganta sem ocasionar maiores danos, ao contrário do que acontecera em dias anteriores, devido a uma gripe que por muito pouco não me derrubara. A sensação de ter a sede saciada era revigorante, fortalecendo-me para a grande noite que teria. 
      Pousei delicadamente o copo de vidro sobre o tampo frio de mármore na mesinha a minha frente. A marca circular produzida pelo vidro molhado na pedra denunciava o meu descuido ao não utilizar o porta-copos. Ninguém atribuía importância a esse detalhe quase insignificante numa casa cuidadosamente desorganizada. Não morava com meus pais há dois anos, podendo, assim, usufruir de inúmeras vantagens. Vivia ali sustentada apenas por uma quantia mensal, cujo valor era  mais do que razoável para uma jovem solteira. Eles pensavam que eu utilizava o dinheiro para pagar minha faculdade de Direito. Direito! Eu que não iria destruir os sonhos e grandes expectativas que eles alimentavam para mim. 
       Permaneci sentada na cadeira de balanço da varanda de minha casa, de onde se tinha uma ampla e espetacular visão daquele antigo prédio, que servia de palco para as  festas mais badaladas do bairro, predominantemente residencial. 
       Eu não era o tipo de pessoa que os outros gostavam de convidar para suas festas medíocres, especialmente se, entre esses "outros", fossem incluídos aqueles que se consideravam parte da "Elite", mas que, na realidade, tratavam-se de meros emergentes. Talvez fosse  a hora certa para uma "visitinha". 
       Abandonei o copo ainda na metade de seu conteúdo. Calcei um par de tênis surrados rapidamente, troquei de camiseta e segui rumo à entrada do edifício. Eu não tinha o hábito de invadir festas à toa.  Contudo, aquele era um caso extremamente peculiar. 
       Naquela noite agradável e estrelada, eu passara incontáveis horas lendo alguns poemas de Charles Baudelaire. Antes que eu pudesse me localizar após a leitura, fui brutalmente despertada de meus devaneios (gerados a partir dos fascinantes versos do poeta francês) pelos acordes violentos de uma guitarra. Mais uma festa se iniciara, convidados surgiam a torto e a direito e eu não percebera o portão se abrir a fim de deixá-los entrar. Considerei a possibilidade de que ao menos alguns deles teriam dormido no apartamento do anfitrião. Entretanto, a explicação encontrada pela minha mente ainda parecia ilógica. 
       Já no lado de fora de minha casa, guardei o molho de chaves no bolso esquerdo das calças jeans e prossegui meu caminho, atravessando a estreita rua que separava a realidade da ilusão. 
       As calçadas adormeciam atulhadas de lixo. Um ou outro carro era ouvido ao longe, percorrendo um quarteirão inteiro em altíssima velocidade, mais do que justificável pelo horário em que transitava. O vento era tão escasso que as folhas das árvores mal se moviam. Os postes de luzes alaranjadas iluminavam meu rosto, no momento em que eu abaixava a cabeça para empurrar o portão azul da entrada do prédio. Estava aberto. Franzi a testa, tomada de surpresa. 
       Subi os degraus da escada num só instante, em direção ao saguão principal, passando pela cabine do porteiro. O funcionário não estava lá. Sua cadeira tombara no chão e lá ficara, como se ele houvesse fugido às pressas, assustado com algo... Ou alguém. Fora isso, não notei nenhum vestígio que indicasse algum crime. Marcas de sangue, pegadas... Absolutamente nada. Pude sentir um misto de alívio e (ouso dizer) decepção ao mesmo tempo. 
       Em compensação, a TV que exibia as gravações das câmeras do circuito de segurança havia sido desligada. Provavelmente, alguém teria feito isso na intenção de cometer um delito e não ser pego com a boca na botija. 
       Meus batimentos cardíacos se aceleraram, logo que constatei as inúmeras probabilidades de aquilo ser verdade. Infiltrei-me na cabine do porteiro e pus-me à procura da tomada, antes de notar que  o aparelho de TV havia sido danificado em sua parte traseira. Minha boca se escancarou, dando origem a uma horrenda expressão de terror, enquanto mente e coração se fundiam num só sentimento: aflição. 
       Corri diretamente para o saguão principal, tendo em mente o acesso direto aos elevadores, uma vez que o salão de festas localizava-se no último andar do prédio. Felizmente, ambos encontravam-se no térreo. Optei pelo elevador social. 
       Assim que as portas se abriram, alcancei o painel de botões, dando repetidos socos na tecla que correspondia ao andar do salão de festas, tendo em mente a ingênua ideia de que, daquela forma, o elevador subiria mais rápido. Nem se tratava exatamente de inocência pura e, sim, de desespero, que não nos deixa pensar com clareza nos momentos de tensão. 
       E se houvesse um bandido lá em cima? Ou pior, uma gangue? E se todos tivessem sido amordaçados e feitos de refém? Quanto pediriam de resgate? E se acabassem atirando acidentalmente em alguém? E se atirassem em mim
       A minha linha de pensamentos assumia rumos cada vez mais aterradores, embora eu tentasse parar de relacionar os possíveis acontecimentos. Eu mal conseguia observar meu reflexo no espelho às minhas costas, tamanha agonia. 
       Fiquei dentro do elevador por um tempo que pareceu ser eterno. 
       Quando as portas se abriram...
       ... Passei a pertencer a outro mundo. 
       — Pensávamos que você não viesse mais! — um homem sorridente veio até mim, como se fosse o recepcionista da festa. Abriu os braços,em sinal de acolhimento, hospitalidade... Quase atirei-me neles,  de tão fragilizada psicologicamente. Seu chapeuzinho em formato  de cone de papel amarelo, típico de festas de aniversário, no alto de sua cabeça, me fez sorrir. 
       Vi que havia um grupo de pessoas atrás dele, todas sorrindo também. Uma delas carregava um enorme e redondo bolo de chocolate. Repentinamente, o grupo começou a bater palmas e cantar "Parabéns a você". Todos ou outros ruídos externos foram eliminados. Só se ouviam vozes misturadas, entre adultas e infantis, em uníssono, na alegria da popular canção. 
       No instante em que dei por mim, deparei-me com o grupo me rodeando, rostos genuinamente felizes. As luzes coloridas de antes haviam sido apagadas. Tudo ao meu redor era branco, bem iluminado e maravilhosamente brilhante. Não fui capaz de perceber nenhum só indício de que uma festa adolescente ocorrera anteriormente ali. Aparentava ser a essência de uma confraternização em família. Até mesmo a noite se tornara mais límpida. 
       Todavia, tinha qualquer coisa errada ali. Terrivelmente errada. 
       Todas as pessoas possuíam uma marca no alto da testa. Uma marca escura e circular, que só notei a partir do instante em que um líquido vermelho de aparência grossa saía dali, num fio fino.
       Sangue. 
       Aquelas eram marcas de bala. 
       Apesar das horrendas feridas na cabeça, eles não aparentavam dor. Aliás, eles deveriam estar mortos. E faziam justamente o contrário: riam e cantavam mais vivos do que nunca. Do que eles tinham sido em vida...
       Já não podia mais sentir meu coração. O órgão queria sair de meu corpo, desesperadamente, enquanto seus batimentos corriam como loucos, parecendo querer levá-lo rumo à garganta. 
       Juntei o resto das forças que tinha e iniciei uma corrida alucinante, cujo prêmio maior era minha própria vida. Ninguém zelaria por ela mais do que eu mesma. 
       Ainda mais aterrorizada, percebi que os anfitriões da festa continuavam com a cantoria, como se não tivessem visto eu fugir. 
       Quando eu estava a um passo de escapar do macabro salão de festas, franzi o cenho, incrédula com a cena que se apresentava diante de meus olhos. 
       Toda a estrutura do prédio havia se transformado em fracas vigas de madeira. Os elevadores haviam simplesmente desaparecido, dando lugar a um escuro abismo. As escadas haviam se decomposto, o pó de sua madeira era disseminado pelos ventos ao redor daquela que já fora uma construção admirável. Naquele instante, caía aos pedaços. 
       Agarrei-me a uma das vigas, na tímida tentativa de manter-me viva. Uma queda do décimo andar seria fatal. 
       — Não vai querer que eu tire uma foto sua? Hoje é seu aniversário...
       Virei-me na direção da voz, a fim de saber quem era o seu emissor. 
       Não fui capaz de realizar qualquer movimento, mas ele foi responsável por paralisar todos os meus. De forma fria e impiedosa. 
       O homem ergueu uma arma que se assemelhava a uma Colt 45 Magnum. 
       E atirou. 


                                                                 *    *    *


       — Você consegui fazer a pesquisa? Sabe, achar alguma coisa referente aquele prédio... — perguntou Erika, a delegada. 
       — Tudo o que eu sei baseia-se em relatos de vizinhos. Ao que parece, este homem descobriu que a mulher o traía com o síndico do prédio.  Muito enciumado, ele esperou a festa de 16 anos de sua filha mais velha acontecer, no salão de festas do edifício, entrou lá com uma arma e matou a todos os convidados, inclusive a esposa e a filha. Por enquanto está foragido — respondeu o agente. 
       — Que história horrorosa! O pior é que essa não será a primeira, nem a última vez. — a delegada comentou, balançando a cabeça, incrédula.
       — Qualquer coisa de estranha havia naquele prédio... Nenhum dos vizinhos diz ter visto os convidados chegando para a festa... E ainda tem uma jovem, que surgiu lá, aparentemente sem ser convidada...  o agente começou a equilibrar os aspectos  do caso. 
       — E qual o problema disso? — indagou a delegada, sem entender aonde o outro queria chegar.
       — Essa jovem teria morrido há dois anos,no desabamento de outra construção, neste mesmo bairro. 
       O agente e a delegada se entreolharam, arrepiados com o caso que tinham em mãos.  






       
       
        

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