Aconteceu numa dessas tardes ensolaradas e úmidas, cingidas pelo cheiro de grama, que se torna mais forte quando se está no campo, como era o caso. O dia não importa, uma vez que os dois pequenos curtiam seus últimos dias de férias e todos sabem que, durante as férias, todos os dias parecem iguais. Não havia segunda-feira que implantasse o mau-humor e nem domingo que não tivesse um piquenique após a missa na Igreja de Santo Antônio.
Tomás e Marília contavam 10 e 11 anos e, até o momento, não haviam frequentado escola formal. Alfabetizados aos 5 anos pela mãe, professora primária, foram educados em casa até concluir o equivalente ao 5º ano do Ensino Fundamental. A partir daí, graças aos tios, que moravam na cidade grande, eles continuariam seus estudos num dos melhores colégios do país, com o auxílio de bolsas integrais. A mãe, com o coração apertado, arrumava as malinhas dos meninos, pois, dali a uma semana, os tios viriam buscá-los e, a partir daí, eles morariam juntos no centro da cidade. O que, certamente, poria fim ao lazer dos dois.
Contudo, a tarde era bonita demais para ser desperdiçada pensando na escola. Especialmente num lugar belo e pacato como aquele, onde pássaros raros seguiam reto pelos bosques da primavera até atingir os riachos de verão. O Sol participava ativamente do festival da natureza. Talvez por se considerar a estrela maior do espetáculo, proibira todas as nuvens de ficarem próximas a ele, para que seu esplendor e sua graça incomparáveis não fossem ocultados.
E foi justamente nesse cenário — que se torna perfeito caso se acrescente uma confortável casa em meio a um prado verdejante, um imenso quintal, um vovô sentado numa cadeira de balanço, situada na varanda dessa casa, e três ou quatro galinhas correndo no quintal — que Marília e Tomás receberam a caixa.
A caixa, assim como notícias de parentes distantes, chegou através do correio. Ao anúncio do carteiro, as crianças prontamente atenderam. A princípio, a ansiedade e a excitação dos irmãos só permitiam que lhes ocorresse que a caixa provavelmente vinha de seus tios. Já o carteiro fazia outra ideia: não havia remetente.
Ignorando a imperplexidade das crianças, o carteiro prosseguiu:
— A mãe ou o pai de vocês está em casa?
— A minha mãe está fazendo o almoço — Marília respondeu — Por quê?
— Eu preciso que ela assine este comprovante de recebimento da entrega. — o funcionário dos correios ergueu uma prancheta com alguns papéis e uma caneta.
— Tá bom. Vou lá chamar ela. — a menina percorreu o caminho feito de pedrinhas que conduzia até a entrada da casa e seguiu para a cozinha. O irmão caçula não hesitou em acompanhá-la, carregando consigo a caixa.
Ao ouvir o som dos chinelos pequeninos dos filhos em contato com o piso de mármore da entrada, a mãe virou-se para ouvi-los, enquanto mexia o feijão na panela com uma colher de madeira.
— O que houve, anjinhos? — ela segurou o rosto de Marília entre as mãos, emoldurando-o com os lindos cabelos cacheados da menina.
— O moço dos correios quer falar com a senhora. Alguém mandou isso aqui para a gente — Tomás apontou para a caixa.
— Quem?
— Nós não sabemos, não veio nome de ninguém, só o nosso. — disse Marília. — Podemos abrir?
A mãe franziu o cenho, desconfiada.
— Podem — respondeu, insegura. — Eu vou ver isso já, já. — e saiu ao encontro do carteiro.
Os meninos correram para a sala.
Marília abriu uma das gavetas da cômoda da sala, onde a avó guardava seus materiais de costura, vasculhando tudo atrás de uma tesoura. Ao consegui-la, foi logo se encarregando de cortar o barbante preso ao pacote e Tomás completou a tarefa, ao rasgar o papel que cobria a caixa.
Ao abri-la, os irmãos se viram em contato com um passado mágico.
Fotografias amareladas e gastas pelo tempo, lápis de colorir, um pequenino caderno de desenhos, um pião, um estilingue, uma série de cartões postais presos com uma fita de seda vermelha e muitas, muitas histórias a serem contadas.
— Olhe, é o vovô! — Marília apontou para uma das fotos, onde um garotinho com os cabelos escuros penteados para trás, de camisa branca e short com suspensório, andava de bicicleta. Ela só pôde reconhecê-lo graças a algumas anotações do verso do papel, que incluíam a data de quando o retrato fora feito, e o nome de seu avô. De outra forma não seria possível, as crianças nunca haviam visto nenhuma daquelas fotografias.
— Puxa, já existia câmera fotográfica nessa época? — Tomás maravilhou-se.
— Ah, Tomás, deixa de ser bobo! O vovô não é tão velho assim.
A fotografia seguinte também retratava o avô dos meninos, na faixa dos 20 anos, em frente a um prédio altíssimo, vestindo terno e gravata. No canto direito inferior, o local onde a fotografia fora tirada: Centro – Rio de Janeiro (RJ).
— Este é um verdadeiro arranha-céu, não é, Tomás? — Marília apontou para a foto.
— Só pode ser. Na cidade, deve ter um monte desses. É por isso que chove tanto...
— O que os arranha-céus têm a ver com a chuva?
— Bom, já que esses prédios arranham, o céu deve sentir uma dor danada! E é por isso que ele chora... As gotas de chuva são as lágrimas do céu...
A ingenuidade do irmão divertiu Marília. Quem sabe o menino não tinha uma veia poética?
As crianças continuaram com a investigação. Quem será que havia lhes enviado a caixa? Alguém próximo a seu avô, provavelmente, a julgar pela quantidade de fotos dele. Mas... De quem seria aquele caderninho de desenhos? Tomás resolveu pegá-lo para si, só para conferir se as pinturas infantis lhes forneceriam algumas pistas de seu dono.
A maioria dos desenhos tentava reproduzir, permeados de traços infantis, a casa onde moravam. Alguns deles, devido a alguns borrões e erros, nem haviam sido contemplados com os riscos de lápis de cor. Outros, por sua vez, muito bem-feitos, ganhavam vida onde predominavam as cores amarela, vermelha, azul e verde.
Na última folha do caderno, uma singela mensagem. E não em caráter pessoal, e, sim, para todos os que querem viver e não apenas existir.
O grande homem é aquele que não perdeu a candura de sua infância
Provérbio chinês
Abaixo, mais um recado, desta vez, destinado diretamente às crianças:
Espero que vocês nunca se esqueçam de quem vocês são realmente. Por mais que estejamos longe uns dos outros, gostaria que vocês mantivessem a simplicidade e a inocência natural das crianças. Sei que isso é difícil, principalmente para aqueles que vivem na cidade (para onde vocês irão daqui a uma semana), onde os monstruosos avanços tecnológicos inibem a criatividade.
Não deixem que os arranha-céus da vida escondam o brilho de vocês e os envergonhem de seus sonhos. Mas, se um dia, as ruas da cidade parecerem ferozes demais para vocês, lembrem-se que o seu velho povoará para sempre seus corações.
Com amor,
Vovô
Tomás e Marília se encaminharam até a varanda e pularam no colo do avô, felizes por descobrirem quem havia lhes enviado a caixa e, acima de tudo, conscientes de que não esqueceriam nunca aquela barba branca, as bochechas coradas e os olhos castanhos tão especiais.
Encantador este conto que nos remete às lembranças passadas da infância e ao jeito do pensar de uma criança que é simplesmente puro e simples.Contudo mostra a descomplexidade do ver infantil das crianças ,dando uma certa leveza ao corpo do conto,que o torna especial.Muito gracioso ver o jeito que o belo e o natural são retratados,pela forma que descreveu as ações do cotidiano e o ambiente em questão,dando a percepção ao leitor de estar vivendo o momento com essas crianças cândidas ,além de ser visível a ligação harmoniosa entre a família dando uma certa aproximação de quem lê com os personagens.Também muito interessante o jeito que "brincou" com a caixa(o presente) em si,demostrando no texto um certo tom de mistério no conteúdo que nele continha.Simplesmente sublime este texto:belo,natural e agradabilíssimo,composição extremamente conssonante.Parabéns a jovem e exímia escritora,texto simplesmente divino!
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