quinta-feira, 16 de junho de 2011

Fragrâncias Noturnas



         Era diamante.
         Papéis, vasos, rosas, veludo, tapete, ouro, vinho, cristal.
         E água.
         Dançavam e comemoravam na magia da casa a chegada da chuva.
         O relógio, preguiçoso, concluíra o movimento de seus ponteiros, que marcavam 1h30 da manhã. O momento, é claro, há muito já transcorrera. Mas, durante a madrugada, tudo é eterno.
         A decoração moderna da sala de estar não ocultava a melancolia ainda presente na casa.
         A chuva se intensificou.
         Tempestade.
         Os cômodos, loucos por apoio uns dos outros, acendiam e apagavam suas respectivas luzes, alternadamente. A sala acendia a luz do abajur, como se enviasse uma mensagem para  a cozinha, para que esta ficasse calma e desse um jeito de fechar sua pequena janela, e evitar que a mesa de jantar ficasse encharcada.
         E então, definitivamente, toda a claridade proveniente das lâmpadas desapareceu.
         O escuro expulsou a luz a pontapés.
         Os tiros d’água eram violentamente disparados contra a porta de vidro da varanda. As formas das plantas, subitamente iluminadas por um relâmpago, entre severas rajadas de vento, pintavam um cenário de horrores diante da casa solitária e assustada. Aquela que outrora oferecera proteção, agora, reduzira-se ao mínimo, mera obra-prima dos homens. Revelava-se incompetente em suas tarefas primordiais, especialmente para os seus donos, que a construíram à base de muita inspiração e nenhuma transpiração.
         Todos os móveis agregaram-se na sala, ignorando o perigo iminente.
         As  águas invadiram a entrada principal, afogando tudo o que vinha pela frente, sem pudor nem piedade. Seu encontro com os móveis se deu de forma lenta e agonizante. Ultrapassadas as barreiras de início, foi a vez de a pesada porta de mogno ceder.
         Sem chances.
         Sem lugar para onde ir.
         Estragados, cheios, afogadas, encharcados, enferrujados, aguados e cada vez mais brilhantes.
         A água sorvia as peculiaridades de cada artefato ali presente e não mais viventes. O jogo de cores violento transformava-se em um anacrônico e torturante círculo de imagens. Um majestoso Mussorgsky dava o ar da graça, fazendo-se ouvir acima do refrescante ruído das águas. Quadros, não pintados à óleo, e, sim, de materiais variados, seguiam sua ordem perfeita na inóspita exposição.
         O ritmo dos fenômenos naturais e materiais desacelerou, após uma série de figuras em sequência não linear.
         Após a tempestade, vem a bonança.
         Única tranquilidade sobrevivente, as damas-da-noite exalavam seu suave e adocicado perfume, unindo-se às demais fragrâncias noturnas. Era o aroma da esperança para um lar recém-dilacerado.  

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