quinta-feira, 26 de maio de 2011

Kafka


       As páginas amareladas de um volume surrado que reunia obras de diversos autores debatiam-se violentamente aos golpes do vento impetuoso daquela melancólica tarde de outono.
       Protegido pelas grades da pequena varanda com vista para o quintal arborizado, ele tentava terminar o conto que tanto o afligira nos últimos dias. Ingênuo, preenchia a mente com preocupações vazias, como se, caso as vivesse com intensidade, seus problemas pareceriam diminutos vistos através de olhos marejados de sensatez.
       Procurou se concentrar na leitura, pouco antes de sentir o coração inquieto ao perceber que as minúsculas letras pretas cuidadosamente dispostas sobre o plano nada queriam dizer para ele. Mas esse estranho devaneio não devia ter comprometido seu entendimento do meio, já que ele ouvira a empregada se aproximar e dizer:
       — Já são três e meia. O senhor não vai almoçar?
       Prolongou-se pelo tempo esperado para uma resposta. Sua boca amargava, ele não tinha a mínima vontade de abri-la, impostar a voz e pronunciar as palavras. Às vezes, desejava que sua ama pudesse ouvir seus pensamentos, o que, evidentemente, o pouparia de esforços.
       Porém, isso não era possível, e ele precisava dar um pouco de atenção à alma caridosa que tanto fizera por ele e por sua família.
      A mulher o aguardava com a paciência que só os sábios têm.
      — Não. — a negação fora clara o suficiente para ser interpretada como um “deixe-me em paz.”.
      A empregada assentiu e retirou-se da varanda, deixando o velho sozinho.     
      No caminho para a cozinha, ela encontrou o filho mais novo de seu patrão.
      — Como ele está reagindo? — ele levantou-se da cadeira subitamente, ávido por informações a respeito do estado de ânimo de seu pai.
      — Ele está há horas sem comer — ela suspirou triste. — Só nos resta esperar...
      — Como, esperar? —  ele quase berrou, incrédulo. — Vamos deixá-lo morrer de fome?
      — O que o senhor quer que eu faça? Que eu enfie comida goela abaixo nele? — ela se manteve firme.  — Pode deixar, eu conheço seu pai há anos. Quando ele tiver fome, ele fala.
      O rapaz levou as mãos aos cabelos, desnorteado com a situação.
      — Mesmo assim, eu continuo perturbado. A mamãe... Quer dizer, foi tudo tão de repente! O câncer já estava num estágio tão avançado... — as lágrimas alcançaram seus olhos verdes.
      — Eu ainda acho que ele se sente culpado por ela. — disse a empregada, enquanto enxaguava a louça. — Ele nunca deixava ela ir ao médico... Coitada da dona Dalva...
      — Ah, Marlene, não fale uma coisa dessas! — o jovem mergulhava em soluços.
      — Ora, já que tá reclamando tanto, por que não vai lá tentar conversar um pouquinho com ele?
      Ele secou as lágrimas com a manga do casaco.
      — Melhor não. Ele deve ficar sozinho. Vamos dar um tempo ao tempo.
      Enquanto os dois dialogavam o trivial na cozinha, o velho escutava tudo, calado. Não condenou nenhum deles pelo que disseram. Nenhum deles fazia ideia do que ele sentia.
      Nem nunca fariam.
      A angústia o devorava vagarosamente, e, devido à sua idade avançada, poderia acabar por destrui-lo.
      Não importava quem estivesse ao seu lado, ele permaneceria sempre sozinho.
      Só naquele instante descobrira o verdadeiro significado da bendita palavra.
      Era desesperador ver-se reduzido ao mais ínfimo grau de insignificância e não ter forças para lutar contra a própria natureza.
      Ele já não era mais nada.
      Exausto, optou por fechar o livro que andara lendo, abraçou-o ternamente e entregou-se ao sussurro do sino-dos-ventos pendurado no teto da varanda.
      E adormeceu profundamente. 



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