sábado, 7 de maio de 2011

Carta de um Anjo sem Auréola


      


     Os primeiros raios de Sol do dia beijavam as ruas estreitas e já apinhadas da cidadezinha com ternura. É um daqueles lugares pitorescos cercados de personagens únicos e intrigantes, alegres e coloridos, embora já houvessem passado parte da vida em preto-e-branco.
      A vida dos habitantes costumava girar em torno da praça, que escondia, em meio a imponentes palmeiras e bancos sujos de fezes de pombo (que ninguém se preocupava em limpar, uma vez que não se sentiam na obrigação de impressionar quem viesse de fora) uma simpática igrejinha.
      Para variar, o padre era conhecido e estimado por todos ali. Havia, inclusive, testemunhado boa parte dos nascimentos ao longo de décadas de monotonia. Nunca demonstrou muito interesse em aprofundar seus conhecimentos a respeito da vida de cada morador, porém divertia-se com as histórias que ouvia à espreita no confessionário.  
      Ainda assim, não esperava receber uma carta naquela manhã, cuidadosamente dobrada entre as milhares e finíssimas páginas áureas do Livro Sagrado.
      A caligrafia puramente infantil não ocultava seu remetente. Talvez esse nem fosse mesmo seu objetivo inicial.
                 Prezado Senhor Padre,
    Primeiramente, me desculpe pela palavra prezado. Mas é que eu não sei qual é o pronome de tratamento certo que eu devo escrever para me dirigir ao senhor. Eu aprendi na escola que as pessoas dizem Vossa Santidade ao falar com o Papa, mas, como o senhor não é papa, acho que eu posso te chamar de senhor mesmo. O senhor não se importa, não é?
   Mamãe mandou que eu fosse me confessar com o senhor. Mas é que eu não sei muito bem o que  dizer. Apesar de eu já ter visto o senhor diversas vezes, nas missas aos domingos de manhã, eu me sinto muito nervoso toda vez que eu tenho que falar da minha vida. Eu gaguejo muito. Por isso achei melhor escrever.
   Eu sei que o senhor não deve lembrar o nome e o rosto de cada fiel que vai para a sua igreja. Bem, só para constar: eu me chamo João e tenho 10 anos. Minha família não é muito grande: mamãe, papai, meu irmão mais velho, minha irmã do meio, e eu, o caçula. Meus irmãos já têm 15 e 14 anos, cada um. Papai trabalha o dia todo, e mamãe é muito beata.
   Mas todo mundo aqui na vila diz o contrário. Eu não me sinto à vontade com isso, porque sei que mamãe não mente. A Filomena, nossa vizinha, contou que ela teve um caso com o pedreiro que estava fazendo uma obra no banheiro lá de casa. Isso antes do homem que veio consertar a máquina de lavar. Essa estava mesmo com defeito. Fazia uns barulhos estranhos lá na lavanderia. Pareciam até gritos de gente. E também havia  outra voz, bem diferente da primeira, que dizia umas coisas estranhas bem baixinho. Mas, como a porta estava fechada, eu não pude ver nada. Depois eu até cheguei a perguntar para a mamãe o que era, mas ela nem respondeu. Ficou toda vermelha. Vai ver que ela tinha vergonha por ter tratado tão mal a pobre da máquina.
   O pessoal também vem com conversa sobre o papai. Dizem que, além de dentista, ele também é mágico: faz o dinheiro todo desaparecer. Mais uma vez, a Filomena mete o nariz enorme dela onde não deve, e espalha para todo mundo que papai é viciado em Jogo do Bicho, e aposta alto nos mesmos animais: coelho, veado... Bobo, não é?
   Meu irmão, Pedro Paulo, de vez em quando arranja confusão com os garotos aqui da rua. Sempre que chega em casa, já vem xingando todo mundo e não quer saber de ser repreendido. Mas tanto faz, ele nem liga muito para a gente...
   Minha irmã, Marina, só vive no mundo dela. Quase não fala com ninguém, passa a maior parte do tempo desenhando. E ela faz desenhos muito bem feitos, viu? Já fez até uma caricatura minha. Ficou bem divertido! Mas só tem um defeito que eu achei horrível: ela fuma de mais. As  pontas dos dedos dela estão quase sempre amareladas. Mas ela é muito boazinha comigo. É uma amigona. Por isso, jurei que nunca iria dedurá-la para os nossos pais. Eles iriam esganá-la.
   Pois é, senhor Padre, acho que por hoje é só. Eu tinha escrito no início da carta que ia me confessar, mas eu sou uma criança, não tenho pecado nenhum! E eu acho que cabe a mim confessar os pecados dos outros, porque eles não têm coragem de fazer isso. Eu sei que eles fariam o mesmo se eu estivesse no lugar deles.
   Ah, estou escrevendo também porque eu me lembrei de que um dos fiéis, o Jeremias, que está sempre aí, é analfabeto. Pelo menos, fico mais feliz em saber que ele não vai contar nada para ninguém, para o caso dessa carta cair nas mãos dele. Ele é muito bisbilhoteiro. Isso é pecado também, não?
   Espero que o senhor possa perdoar e abençoar minha família, mas eu acho difícil. Às vezes, eu penso que nasci no lugar errado. Eu faço tudo certo, não falo palavrão, não maltrato ninguém... Por que as coisas são assim?
   E, por favor, não me fale que a minha vida é boa porque eu já estou por aqui com essa bondade!
                                                                    Apertos de mão,
                                                                                 João
     P.S.: Ah, perdoa a Filomena também. É que eu acho que ela não tem o que fazer.
      

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