domingo, 29 de maio de 2011

Sangue Negro





           — Aceita mais uma dose de uísque, senhor?
           — Não, obrigado.
           — O senhor está esperando alguém?
           — Estou sim. É um amigo meu... — respondi, entediado, enquanto olhava rapidamente para o relógio de pulso. — E ele está atrasado... Tomara mesmo que ele tenha um bom motivo para isso... — senti meus músculos enrijecerem.
            O barman assentiu distraidamente, concentrando-se em preparar a bebida de outro freguês, que havia acabado de se sentar ao balcão, a cinco bancos de distância. Estava acompanhado de uma loura exuberante que sussurrava obscenidades ao pé do ouvido. Uma prostituta, a julgar pela qualidade de suas roupas. A beleza vulgar perante a imponente maturidade do homem constituía o mais grotesco dos contrastes. A aliança no dedo dele revelava seu patético gesto de infidelidade.
            O que um ser humano não é capaz de fazer por dinheiro? Submeter-se a mais imunda e abjeta gente, expor a todos suas chagas morais, estar à mercê de inimagináveis desventuras; para, só assim, sustentar sua medíocre existência?
            Eu sempre soube, mais do que muitos, o que alguém faz para ter acesso a uns trocados a mais. E era por isso que eu estava ali. Pelo dinheiro.
            Por causa do maldito dinheiro.
            E eu não sairei daqui sem ter minha grana de volta.
           Quem aquele infeliz pensava que fosse, ao me deixar plantado num bar, com os olhos vermelhos e cansados e cheirando a um bêbado encardido? Se ele demorasse mais meia hora, eu iria socá-lo e...
           Sacudi a cabeça, tentando me desvencilhar de pensamentos que só me deixariam furioso e estressado. Ocupei-me de contemplar a decoração do local e de absorver a atmosfera do fim de noite. As luzes de neon dominavam o contorno das prateleiras onde ficavam as garrafas de bebidas. Os bancos eram de couro vermelho. Pôsteres de grandes estrelas do cinema e da música dos anos 1950 e 1960 eram iluminados por molduras de pequenas lâmpadas amarelas. Um letreiro arroxeado, também de neon, pendia acima do palco, com os dizeres Jazz Bar. A não ser pela iluminação proveniente das lâmpadas espalhadas, o bar estava no escuro.
           Havia uma banda de jazz tocando ao vivo para meia dúzia de pessoas. Não que o bar fosse decadente, e sim porque já devia passar de uma da manhã. Em tempos como aqueles, não se costumava ficar até tarde na rua. A madrugada de sábado para domingo saboreava-se ao som do sax e de algumas notas do piano ao fundo.
           O ambiente era perfeito. Deixei-me levar pelo som de Charlie Parker.
           No instante em que os músicos começaram a tocar All the things you are, ele entrou no bar.
           Estava pálido e encharcado. Com o alto volume da música, eu nem percebi que chovia torrencialmente lá fora. Seus olhos escuros se encontraram com os meus. Ele congelava por dentro, visivelmente abatido por me encontrar ali, mesmo tenho certeza de que eu estaria ali, de qualquer forma.
           Sentou-se no banco ao lado do meu, e logo começou com suas tolas explicações.
           — Olha, antes de tudo, eu preciso que você entenda que...
           — Eu já te dei tempo o suficiente — respondi, seco. — O que houve dessa vez?
           — É que surgiu um imprevisto. Eu atrasei no pagamento da pensão alimentícia para minha ex-mulher e tive que pagar, senão, eu iria para a cadeia e...
           — Ah, quer dizer que você quase foi preso! — interrompi. — Não sabe a angústia que me daria ver um de meus melhores homens na cadeia! — dei-lhe um tapa nas costas. — E tudo por causa de uma vagabunda que acha que tem direito sobre os seus bens...
           — Não! — redarguiu, trêmulo. — Nós temos uma filha juntos e, como ela mora com a mãe, bem, eu devo fornecer a ela o melhor que eu puder.
           — Não se preocupe com isso, filho. — eu sorri para ele. — Pode me pagar quando puder. Enquanto isso, tome um drink. — apontei meu copo para ele. — E esse é por minha conta...
           — Ob-Obrigado. — ele desconfiava de minha repentina simpatia, visivelmente apreensivo. Podia ser tudo, mas não era burro. — Mas... Eu tenho que ir agora.
           — Não se vá. É tão tarde que chega a ser cedo... — disse, rindo.
           — Desculpe, eu não posso ficar mais tempo. Minha menina veio passar o fim de semana comigo, e eu a deixei dormindo sozinha no meu apartamento. Se ela acordar e não me ver lá... As coisas vão pesar bastante para o meu lado. — ele respondeu, levantando-se do banco.
           — Já que é assim, eu vou acompanhá-lo. Você quer uma carona até o seu prédio?
           — Não, não precisa. Eu pego um ônibus.
           — De qualquer forma, eu vou com você. — peguei minha carteira, retirei cinco pratas de lá e coloquei-as em cima do balcão, como pagamento pela minha dose dupla de uísque. Levantei-me do banco. Saímos do bar.
           Àquela hora da noite, a chuva já havia parado, o céu estava límpido como nunca, e sem estrelas.  Alguns carros velhos estacionados na calçada em frente ao bar pareciam não ter dono. Eu deixara o meu num beco atrás do bar, distante dos outros. Aquele otário, obrigatoriamente, passaria por ali para chegar até o ponto de ônibus. Que incrível coincidência, não?
          Seguimos andando pela rua. Demorei-me alguns momentos, ficando a poucos metros atrás dele. Ele já estava decidido a ir embora, como se não houvesse mais ninguém ali.
          Entretanto, ele era só um infeliz entre tantos outros que já fizeram inúmeros empréstimos comigo. E que não pagaram. Uma coisa que eu não suporto em pessoas necessitadas é a incrível habilidade que elas têm de provocar-lhes compaixão. E, assim, conseguem tudo o que querem. Fazem promessas vazias, pedem piedade.
          Obviamente, não se deve acreditar nelas. Faz parte de seu teatral disfarce.
          Elas têm o poder de te deixar impotente, como aquela prostituta no bar.
          O imbecil me deixou numa posição tão ruim quanto a daquela vadia!
           Saquei meu revólver de debaixo do paletó.
           Ele continuava caminhando, em câmera lenta, como se nada fosse...
           Apertei firme o gatilho.
           Um primeiro tiro.
           Dois.
           O sangue negro jorrou pela sua camisa social.
           Pelas costas.
           E acabou.
           A lua sorriu. Era crescente.  
           A noite era bela. 



sexta-feira, 27 de maio de 2011

Mr. Succeed


Tão logo subiu um degrau
Trata, pois, a todos tão mal 
Não se sabe o que lhe fizeram 
Ou o que lhe disseram.

Talvez seja assim 
Sua tola ascensão enfim 
Lhes mostrou quem era 
E o que se espera de si. 

Seu dia-a-dia 
         Quem diria 
 [por fim 

Compreende Sartre 
Avalia Delaunay 
E contanto que escute Vivaldi 
Está tudo bem...

O mundo pode aguardar 
Até o baile começar
A cidade pode explodir
E ele pretende assistir 

Seu dia-a-dia 
        Quem diria 
 [por fim 

Lê Faulkner 
Aprecia Dalí 
E enquanto ouve Beethoven 
Não está nem aí 





quinta-feira, 26 de maio de 2011

Kafka


       As páginas amareladas de um volume surrado que reunia obras de diversos autores debatiam-se violentamente aos golpes do vento impetuoso daquela melancólica tarde de outono.
       Protegido pelas grades da pequena varanda com vista para o quintal arborizado, ele tentava terminar o conto que tanto o afligira nos últimos dias. Ingênuo, preenchia a mente com preocupações vazias, como se, caso as vivesse com intensidade, seus problemas pareceriam diminutos vistos através de olhos marejados de sensatez.
       Procurou se concentrar na leitura, pouco antes de sentir o coração inquieto ao perceber que as minúsculas letras pretas cuidadosamente dispostas sobre o plano nada queriam dizer para ele. Mas esse estranho devaneio não devia ter comprometido seu entendimento do meio, já que ele ouvira a empregada se aproximar e dizer:
       — Já são três e meia. O senhor não vai almoçar?
       Prolongou-se pelo tempo esperado para uma resposta. Sua boca amargava, ele não tinha a mínima vontade de abri-la, impostar a voz e pronunciar as palavras. Às vezes, desejava que sua ama pudesse ouvir seus pensamentos, o que, evidentemente, o pouparia de esforços.
       Porém, isso não era possível, e ele precisava dar um pouco de atenção à alma caridosa que tanto fizera por ele e por sua família.
      A mulher o aguardava com a paciência que só os sábios têm.
      — Não. — a negação fora clara o suficiente para ser interpretada como um “deixe-me em paz.”.
      A empregada assentiu e retirou-se da varanda, deixando o velho sozinho.     
      No caminho para a cozinha, ela encontrou o filho mais novo de seu patrão.
      — Como ele está reagindo? — ele levantou-se da cadeira subitamente, ávido por informações a respeito do estado de ânimo de seu pai.
      — Ele está há horas sem comer — ela suspirou triste. — Só nos resta esperar...
      — Como, esperar? —  ele quase berrou, incrédulo. — Vamos deixá-lo morrer de fome?
      — O que o senhor quer que eu faça? Que eu enfie comida goela abaixo nele? — ela se manteve firme.  — Pode deixar, eu conheço seu pai há anos. Quando ele tiver fome, ele fala.
      O rapaz levou as mãos aos cabelos, desnorteado com a situação.
      — Mesmo assim, eu continuo perturbado. A mamãe... Quer dizer, foi tudo tão de repente! O câncer já estava num estágio tão avançado... — as lágrimas alcançaram seus olhos verdes.
      — Eu ainda acho que ele se sente culpado por ela. — disse a empregada, enquanto enxaguava a louça. — Ele nunca deixava ela ir ao médico... Coitada da dona Dalva...
      — Ah, Marlene, não fale uma coisa dessas! — o jovem mergulhava em soluços.
      — Ora, já que tá reclamando tanto, por que não vai lá tentar conversar um pouquinho com ele?
      Ele secou as lágrimas com a manga do casaco.
      — Melhor não. Ele deve ficar sozinho. Vamos dar um tempo ao tempo.
      Enquanto os dois dialogavam o trivial na cozinha, o velho escutava tudo, calado. Não condenou nenhum deles pelo que disseram. Nenhum deles fazia ideia do que ele sentia.
      Nem nunca fariam.
      A angústia o devorava vagarosamente, e, devido à sua idade avançada, poderia acabar por destrui-lo.
      Não importava quem estivesse ao seu lado, ele permaneceria sempre sozinho.
      Só naquele instante descobrira o verdadeiro significado da bendita palavra.
      Era desesperador ver-se reduzido ao mais ínfimo grau de insignificância e não ter forças para lutar contra a própria natureza.
      Ele já não era mais nada.
      Exausto, optou por fechar o livro que andara lendo, abraçou-o ternamente e entregou-se ao sussurro do sino-dos-ventos pendurado no teto da varanda.
      E adormeceu profundamente. 



domingo, 15 de maio de 2011

Schadenfreude


Night in St. Cloud, by Edvard Munch

    Essa é a noite.  

           Sim, era.
           A Lua cheia, imaculada pérola resplandecente entre o veludo negro banhado a estrelas que era o céu de Berlim em junho de 1934, tentava, sem obter êxito, iluminar os rostos tanto daqueles que sofriam quanto dos beneficiados por tais desgraças.
          E eu me incluía no segundo grupo.
          As janelas e portas dos prédios residenciais e comerciais, dentre os quais estava localizado o meu pequeno apartamento no quarto andar, já haviam fechado há horas. As luzes por detrás dos altos muros de concreto, apagadas. As únicas fontes de claridade na rua eram os postes, instalados em cada esquina.
         Acendi um cigarro e dei uma tragada, soltando a fumaça em seguida. Meu quarto se encolhia em meio aos quadros de Edvard Munch, recuava até o final do corredor e se refugiava na garganta profunda da escuridão. Tudo porque estremecia ao ouvir o discurso de um companheiro meu do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, gravado no rádio. As frases pronunciadas por ele eram estacas impetuosas pressionadas contra o peito dos céticos.
         Ele não precisava tocar sua pureza e inteligência na coragem covarde de uma pistola, um fuzil, um revólver ou o que quer que fosse.
         Suas palavras eram a arma mais devastadora que já existira.
         E ele sabia como usá-las.
         Ele era incrível. Traduzia com maestria o meu pensamento e o de outros milhares de cidadãos dignos em falas bem estruturadas.
         Deixei que o cigarro repousasse sobre o carpete escuro manchado de champanhe, e apaguei-o, comprimindo-o com a sola do meu sapato.
         Enquanto o fazia, dei por conta de um pequeno grupo constituído por duas mulheres, um homem e uma criança, que corriam apressados pela calçada. Seus gemidos apavorados puseram toda a serenidade da rua a perder. Carregavam sacolas pequenas, mas abarrotadas de roupas e sapatos. Provavelmente iam até estação de trem. A criança, uma menina de cabelos castanhos que não aparentava ter mais de dez anos, levava um ursinho de pelúcia a tiracolo. E, junto desse ursinho, avistei o motivo da fuga.
         Uma faixa com a Estrela de Davi bordada em amarelo presa a seu braço direito.
         Malditos judeus.
         Aproveitavam a madrugada para negar o inegável e alterar o curso de suas existências deploráveis.
         Abri a janela de meu quarto e cuspi no parapeito, desejando tê-los atingido. Imediatamente pensei melhor, e concluí que minha saliva era valiosa demais para ser desperdiçada na pele de um judeu.
         ­— Não andem na calçada, seus miseráveis! Vocês não merecem isso! — gritei para eles, que permaneciam lá embaixo.
         Eles ergueram a cabeça para olhar para mim e me obedeceram, sufocados pelo terror. Seguiram seu rumo pelo meio da rua. Torci para que um carro surgisse ali  e os atropelasse. Tal visão desenhou um sorriso em meus lábios.
         Com isso, vesti minha melhor roupa. Fechei a janela. Penteei meus cabelos com extrema cautela: nenhum só fio fora do lugar. O espelho refletiu o fulgor da raça ariana em meus olhos.
        Sim, aquela era a noite.
        Não restavam dúvidas.
        Eu iria presenciar um acontecimento que ficaria marcado na História da Humanidade.
        Para sempre.
        Tudo durante aquela noite.
         Furei meu dedo com um alfinete preso à minha calça deliberadamente. O sangue escorreu, já consciente de sua utilidade naquele exato momento.
        Levei-o até o espelho e desenhei o símbolo que faria todos tremerem, em qualquer época e em qualquer lugar dali para frente.

               



sábado, 7 de maio de 2011

Carta de um Anjo sem Auréola


      


     Os primeiros raios de Sol do dia beijavam as ruas estreitas e já apinhadas da cidadezinha com ternura. É um daqueles lugares pitorescos cercados de personagens únicos e intrigantes, alegres e coloridos, embora já houvessem passado parte da vida em preto-e-branco.
      A vida dos habitantes costumava girar em torno da praça, que escondia, em meio a imponentes palmeiras e bancos sujos de fezes de pombo (que ninguém se preocupava em limpar, uma vez que não se sentiam na obrigação de impressionar quem viesse de fora) uma simpática igrejinha.
      Para variar, o padre era conhecido e estimado por todos ali. Havia, inclusive, testemunhado boa parte dos nascimentos ao longo de décadas de monotonia. Nunca demonstrou muito interesse em aprofundar seus conhecimentos a respeito da vida de cada morador, porém divertia-se com as histórias que ouvia à espreita no confessionário.  
      Ainda assim, não esperava receber uma carta naquela manhã, cuidadosamente dobrada entre as milhares e finíssimas páginas áureas do Livro Sagrado.
      A caligrafia puramente infantil não ocultava seu remetente. Talvez esse nem fosse mesmo seu objetivo inicial.
                 Prezado Senhor Padre,
    Primeiramente, me desculpe pela palavra prezado. Mas é que eu não sei qual é o pronome de tratamento certo que eu devo escrever para me dirigir ao senhor. Eu aprendi na escola que as pessoas dizem Vossa Santidade ao falar com o Papa, mas, como o senhor não é papa, acho que eu posso te chamar de senhor mesmo. O senhor não se importa, não é?
   Mamãe mandou que eu fosse me confessar com o senhor. Mas é que eu não sei muito bem o que  dizer. Apesar de eu já ter visto o senhor diversas vezes, nas missas aos domingos de manhã, eu me sinto muito nervoso toda vez que eu tenho que falar da minha vida. Eu gaguejo muito. Por isso achei melhor escrever.
   Eu sei que o senhor não deve lembrar o nome e o rosto de cada fiel que vai para a sua igreja. Bem, só para constar: eu me chamo João e tenho 10 anos. Minha família não é muito grande: mamãe, papai, meu irmão mais velho, minha irmã do meio, e eu, o caçula. Meus irmãos já têm 15 e 14 anos, cada um. Papai trabalha o dia todo, e mamãe é muito beata.
   Mas todo mundo aqui na vila diz o contrário. Eu não me sinto à vontade com isso, porque sei que mamãe não mente. A Filomena, nossa vizinha, contou que ela teve um caso com o pedreiro que estava fazendo uma obra no banheiro lá de casa. Isso antes do homem que veio consertar a máquina de lavar. Essa estava mesmo com defeito. Fazia uns barulhos estranhos lá na lavanderia. Pareciam até gritos de gente. E também havia  outra voz, bem diferente da primeira, que dizia umas coisas estranhas bem baixinho. Mas, como a porta estava fechada, eu não pude ver nada. Depois eu até cheguei a perguntar para a mamãe o que era, mas ela nem respondeu. Ficou toda vermelha. Vai ver que ela tinha vergonha por ter tratado tão mal a pobre da máquina.
   O pessoal também vem com conversa sobre o papai. Dizem que, além de dentista, ele também é mágico: faz o dinheiro todo desaparecer. Mais uma vez, a Filomena mete o nariz enorme dela onde não deve, e espalha para todo mundo que papai é viciado em Jogo do Bicho, e aposta alto nos mesmos animais: coelho, veado... Bobo, não é?
   Meu irmão, Pedro Paulo, de vez em quando arranja confusão com os garotos aqui da rua. Sempre que chega em casa, já vem xingando todo mundo e não quer saber de ser repreendido. Mas tanto faz, ele nem liga muito para a gente...
   Minha irmã, Marina, só vive no mundo dela. Quase não fala com ninguém, passa a maior parte do tempo desenhando. E ela faz desenhos muito bem feitos, viu? Já fez até uma caricatura minha. Ficou bem divertido! Mas só tem um defeito que eu achei horrível: ela fuma de mais. As  pontas dos dedos dela estão quase sempre amareladas. Mas ela é muito boazinha comigo. É uma amigona. Por isso, jurei que nunca iria dedurá-la para os nossos pais. Eles iriam esganá-la.
   Pois é, senhor Padre, acho que por hoje é só. Eu tinha escrito no início da carta que ia me confessar, mas eu sou uma criança, não tenho pecado nenhum! E eu acho que cabe a mim confessar os pecados dos outros, porque eles não têm coragem de fazer isso. Eu sei que eles fariam o mesmo se eu estivesse no lugar deles.
   Ah, estou escrevendo também porque eu me lembrei de que um dos fiéis, o Jeremias, que está sempre aí, é analfabeto. Pelo menos, fico mais feliz em saber que ele não vai contar nada para ninguém, para o caso dessa carta cair nas mãos dele. Ele é muito bisbilhoteiro. Isso é pecado também, não?
   Espero que o senhor possa perdoar e abençoar minha família, mas eu acho difícil. Às vezes, eu penso que nasci no lugar errado. Eu faço tudo certo, não falo palavrão, não maltrato ninguém... Por que as coisas são assim?
   E, por favor, não me fale que a minha vida é boa porque eu já estou por aqui com essa bondade!
                                                                    Apertos de mão,
                                                                                 João
     P.S.: Ah, perdoa a Filomena também. É que eu acho que ela não tem o que fazer.