A estrada fluía como um filme diante das amplas janelas de vidro fumê do carro de minha mãe. O sol já se punha ao longe, o céu mesclava-se entre tons de rosa e dourado pelo horizonte, enquanto o coração da noite concentrava-se no azul marinho, preparando-se para enegrecer. Parte da neve já derretera com a chuva da tarde e eu descansava, recostada nos bancos de couro, cantarolando um Noturno de Chopin.
A rodovia que nos levava para São Petersburgo era serenamente apavorante. De uma margem a outra, não se viam outros veículos além do nosso. Parecia que o frio havia trancado todos os habitantes das redondezas em suas casas. Segundo um dos termômetros à beira da estrada, a temperatura era de -11ºC.
Percebi que minha mãe mantinha as mãos ainda mais firmes no volante, como se desejasse aumentar a velocidade sem ser alvo de olhares desaprovadores. Não sei de quem. Eu mesma torcia para que ela voasse a duzentos quilômetros por hora, contanto que chegássemos o mais rápido possível à casa de meus tios.
Minhas férias de inverno na Rússia mostravam-se bem proveitosas até então. Em poucas semanas, eu já visitara os principais monumentos da cidade, como o Palácio de Mármore, além de inúmeros museus.
Naquele momento, voltávamos de uma pequena viagem de cinco dias para Moscou, onde havíamos nos hospedado num hotel. Uma verdadeira aventura para duas estrangeiras que mal sabem balbuciar palavras em russo.
Anoitecia a uma rapidez espantosa. O céu , o tal lençol negro bordado de escassas estrelas semiapagadas, estava prestes a se levantar e a nos cobrir. Esse fenômeno de beleza estonteante deve ser o que muitos denominam de “o cair da noite”.
Entretanto, a mim era indiferente presenciá-lo ou não. Eu já me enjoara dos biscoitos de aveia que tínhamos comido durante nosso tour por Moscou. Minha boca amargava, enquanto eu esperava ser saciada por uma xícara de chocolate quente em frente à lareira. Meus olhos se fecharam ao sabor da lembrança.
Quando menos esperava, fui surpreendida pela visão de um idoso maltrapilho atravessando a estrada. Os faróis do carro iluminaram seu rosto de perfil, e ele cobria os olhos com as mãos em resposta à intensa claridade. Mas, ao contrário do que pensei inicialmente, minha mãe não diminuiu a velocidade, nem mesmo freou. Eu penetrei fundo em seus olhos através do retrovisor, minha mente tomada de pavor.
— PARE! AGORA!
Apertei forte seu braço direito, porém, já era tarde demais.
O veículo se movimentou a um solavanco violento. De repente, nada mais parecia real e todos os elementos a minha volta não pertenciam mais àquele plano e, sim, a o de um pesadelo.
Um cruel pesadelo.
Que se concretizou quando ouvi os ossos do velho se quebrando. Seu grito rouco fora sufocado pelos frios e pesados pneus do carro. Sofrera graves ferimentos pelo corpo e, provavelmente, não duraria muito caso não fosse imediatamente encaminhado à emergência do hospital mais próximo.
Assim que se libertou do corpo inerte, o carro voltou à sua velocidade inicial.
Horrorizada, procurei por minha mãe. Precisava olhar para ela, alertá-la de que precisávamos salvar o homem que ela acabara de atropelar.
— Mãe! PARA A DROGA DESSE CARRO AGORA! Não podemos deixar aquele idoso morrer! Eu vou chamar uma ambulância!
Desci as mãos para o bolso da calça, em frenética busca pelo meu telefone celular.
A reação dela me surpreendeu.
— Quer que eu seja presa? — ela avançou ferozmente sobre mim, enquanto pisava fundo no acelerador; àquela altura já devia ter ultrapassado os duzentos e cinquenta quilômetros por hora.
— Mãe, olhe para frente, senão iremos bater!
Ela fez o que eu ordenara desesperadamente e, por sorte, foi capaz de desviar de um poste.
Virei-me para trás, onde a vítima de seu repentino e impetuoso acesso de loucura jazia.
Ele não estava mais lá.
Seu corpo tinha desaparecido.
Como isso pôde acontecer?
Nada parecia mais em sintonia com relação ao Universo. Nada mais fazia sentido.
Nada.
E aquela mulher louca, quem era? Certamente não era minha mãe. Ela não mataria alguém à toa. E também não tentaria me matar.
Certamente, o velocímetro explodiria a qualquer momento.
Mas eu necessitava escapar...
... Apenas para salvar minha vida.
Sem pensar em mais nada, com o coração acelerado e já encolhida pelo medo, decidi arriscar. Abri uma das janelas do carro. A mesma pela qual, minutos antes, eu observara o entardecer.
Quantos minutos eram necessários para que alguém mudasse da água para o vinho?
Apenas alguns.
— O que você está fazendo? — seus olhos injetados de vermelho borbulhavam de ódio.
Não respondi e nem me intimidei com sua expressão facial.
Esperei encontrar algum indício de reconhecimento familiar nela.
Nada.
Respirei fundo.
E pulei.
Com o impacto que meus pés atingiram o chão, eu rolei pelo asfalto, ganhando algumas escoriações pelo caminho. Esses leves sangramentos arderam um pouco. Mas nada mais me deteria.
Nada.
Não sei por quanto tempo eu permaneci correndo. Não sei para onde aquele idoso gravemente ferido fora. Não sei se as minhas próprias feridas irão cicatrizar.
Só sei que eu nunca mais vi aquela mulher de novo. E nem desejaria isso.
Nunca mais.
Insólito.
ResponderExcluirBelo.