quinta-feira, 28 de abril de 2011

Perfeição


         Eu não sou o que você espera de mim, e creio que nunca serei. Sob sua frágil e trêmula sombra, obtive apoio, antes mesmo de alcançar a habilidade de refletir sobre os seus atos. Antes mesmo de eu perceber que era tão-só um simples espelho suspenso na parede do quarto, e que refletia apenas sua imagem distorcida.
         A matemática implacável do tempo seguiu com seu percurso, privando-me de coisas maravilhosas. O contentamento que floresceu diante de meus olhos ao descobrir quem eu era foi medíocre em relação à minha monstruosa decepção quando eu constatei quem eu não era.
         Graças ao fatal despertar da alma, desprendi-me de seus sufocantes tentáculos para atirar-me nos braços de meu eu. Entretanto, se não fosse pedir muito, eu gostaria ainda que você revesse alguns pontos, caso ainda seja capaz de me perdoar.
         Desculpe se o meu raciocínio não é tão rápido quanto você queria que fosse. É que às vezes eu não consigo pensar com clareza, e você só piora tudo no momento em que insiste em vociferar e rugir.
         Desculpe se eu não corro tão rápido a ponto de ser classificado para participar das Olimpíadas. As chuvas fortes de janeiro e, por conseguinte, a gripe, me enfraqueceram estupidamente, aliadas, é claro, ao seu rigoroso e equivocado treinamento. E meu precoce desinteresse por esportes.
         Desculpe se eu não me expresso tão bem quanto deveria.
         Desculpe se eu não tenho nenhuma habilidade especial da qual você possa se gabar na TV.
         Desculpe por eu ter sido inapto a aprender a tocar piano aos três anos e compor um Prelúdio aos oito.
         Desculpe por eu não ter puxado sua beleza ou a sua inteligência. É necessário ressaltar que eu sou um novo ser, e não uma versão reduzida de você, o que, provavelmente, foi seu mais profundo desejo ao decidir me conceber.
         Eu não sou seu sonho realizado, nunca fui, mas, sim, tinha  os meus próprios sonhos a realizar. Por mim e para mim. 
         E você se revelou extremamente competente ao destruí-los. 
         Desculpe se as nossas conversas constituem-se basicamente de monossílabos. Torna-se quase impossível falar de maneira clara e objetiva enquanto você me fuzila com o olhar do outro lado da mesa de jantar.
         Desculpe se eu tenho perdido o interesse em você ultimamente.
         Desculpe se eu demoro a responder às suas perguntas.
         E, por fim, desculpe-me se eu não correspondo ao padrão pré-estabelecido de perfeição.
         Eu sou só aquele que é comumente denominado...
         ... Filho.



terça-feira, 19 de abril de 2011

Armadilhas




      Existe uma lenda que data de tempos imemoriais, que busca explicar o desaparecimento de uma antiga civilização, da qual os humanos não fizeram nenhum registro escrito, embora houvessem convivido ao mesmo tempo e dentro de um só espaço. Seu nome exato, até hoje, não é conhecido, apesar de alguns acreditarem que Kibtz seja a denominação correta.
      Tratavam-se de criaturas verdes, de pele escamosa e de cabeça raspada. Viviam na mata virgem, onde cultuavam seus deuses em um templo muito bonito, cujo modelo arquitetônico surpreendia por seu aspecto futurista. Assemelhava-se a uma pirâmide constituída por uma série de resistentes colunas, que continham pequenas frestas, que armazenava mensagens de um habitante da aldeia para outro, assim como oferendas e orações de sua religião politeísta. O complexo alfabeto desenvolvido por eles se permitiu ser esquecido através dos séculos.
      Em frente ao templo, uma bela piscina fora construída. Os raios do Sol refletiam nas águas límpidas, tornando o cenário ainda mais belo e convidativo. Qualquer um que vagasse por ali, quase desfeito em suor, se sentiria tentado a mergulhar ali.
      Isto é, qualquer um que ignorasse ao feitiço ao qual a piscina havia sido submetida.
     Durante uma brilhante manhã, um grupo de bandeirantes explorava a região, cercando todos os pontos estratégicos. Estavam dispostos a aprisionar os nativos e confiscar tudo o que encontrassem no templo — joias, ouro, prata, pedras preciosas, pinturas e escritos sagrados.        
     O momento era bastante propício, visto que todos haviam se ausentado para caçar e só um pequeno ser protegia o templo: Menkata, o bebê do soberano dos Kibtz. Em sua candura, aquela curiosa espécie residente em um dos cantos mais remotos do planeta, pensara que, daquela forma, qualquer um que tentasse invadir o templo, se comoveria diante da fragilidade da criança e nada de ruim atormentaria o povo.     
     E não era só isso: uma armadilha inimaginável reforçava a defesa contra ataques de forasteiros.
    A piscina.
    Os ancestrais dos Kibtz transmitiam oralmente mitos sobre as águas da piscina. Todo ser vivente da face da Terra, não importando sua pequenez ou sua grandeza, que se banhasse naquelas águas, seria amaldiçoado para sempre.
    No mesmo dia, os homens brancos chegaram ao templo. Ficam impressionados diante de sua magnitude. Sorriem e comemoram a vitória não ganha. Até que se dão pela presença de um cesto de lençóis imaculados, onde o bebê repousa. De início, não lhe atribuem importância, e põem-se dividir em grupos: três entrariam no templo, enquanto os outros três se concentrariam na entrada, avisando caso o perigo chegasse. Desses três, dois reclamam do intenso calor, tirando a camisa e se perguntando se poderiam mergulhar na imensa piscina. O outro pede para que os dois calem a boca, enquanto percorre a floresta com os olhos, sentindo o cheiro de perigo no ar. Enxerga um vulto, ao longe, entre as árvores. No desespero de dar a notícia ao outros companheiros, ainda dentro do templo, ele tropeça na cesta do bebê e, sem intenção, acaba por deixá-lo cair e, por conseguinte, possibilitou que ele penetrasse nas águas traiçoeiras da piscina.  
    Repentinamente, tudo mudou. O dia deu lugar a um céu escuro e tenebroso, e o grupo começou a temer o extermínio de toda vida humana. Era como se o Sol nunca mais fosse nascer e azarados seriam os remanescentes naquele canto isolado do Universo. A piscina transformou-se em uma genuína pira olímpica, onde o bebê já não mais ardia em chamas: as queimaduras estendiam-se pela sua espécie, provocando dores lancinantes que jamais sarariam.
     Todos os Kibtz correram para o templo, na tentativa de compreender o acontecimento. Quando o alcançaram, recuaram, sentindo-se impotentes diante de um povo que imaginavam ser superior a eles. Ainda de acordo com sua mitologia, se alguém tivesse a infelicidade de tocar as águas da piscina, seus familiares ou seres de sua própria espécie deveriam realizar algum tipo de sacrifício.
     A extinção.
     Enfraquecidos emocionalmente, perante cruel tragédia, os Kibtz sucumbiram aos desejos dos homens brancos. Deixaram que levassem todas as suas riquezas e logo depois, foram aniquilados em uma dos mais sangrentos extermínios dos quais jamais se teve notícia.
     E assim, por erros aparentemente banais, todo o sonho de uma civilização se entregou a um atroz destino: o desaparecer e, pior, ser esquecido para sempre. 

terça-feira, 12 de abril de 2011

Ao cair da Noite


                A estrada fluía como um filme diante das amplas janelas de vidro fumê do carro de minha mãe. O sol já se punha ao longe, o céu mesclava-se entre tons de rosa e dourado pelo horizonte, enquanto o coração da noite concentrava-se no azul marinho, preparando-se para enegrecer. Parte da neve já derretera com a chuva da tarde e eu descansava, recostada nos bancos de couro, cantarolando um Noturno de Chopin.
                A rodovia que nos levava para São Petersburgo era serenamente apavorante. De uma margem a outra, não se viam outros veículos além do nosso. Parecia que o frio havia trancado todos os habitantes das redondezas em suas casas. Segundo um dos termômetros à beira da estrada, a temperatura era de -11ºC.
                Percebi que minha mãe mantinha as mãos ainda mais firmes no volante, como se desejasse aumentar a velocidade sem ser alvo de olhares desaprovadores. Não sei de quem. Eu mesma torcia para que ela voasse a duzentos quilômetros por hora, contanto que chegássemos o mais rápido possível à casa de meus tios.
                Minhas férias de inverno na Rússia mostravam-se bem proveitosas até então. Em poucas semanas, eu já visitara os principais monumentos da cidade, como o Palácio de Mármore, além de inúmeros museus.
                Naquele momento, voltávamos de uma pequena viagem de cinco dias para Moscou, onde havíamos nos hospedado num hotel. Uma verdadeira aventura para duas estrangeiras que mal sabem balbuciar palavras em russo.
                Anoitecia a uma rapidez espantosa. O céu , o tal lençol negro bordado de escassas estrelas semiapagadas, estava prestes a se levantar e a nos cobrir. Esse fenômeno de beleza estonteante deve ser o que muitos denominam de “o cair da noite”.
                Entretanto, a mim era indiferente presenciá-lo ou não. Eu já me enjoara dos biscoitos de aveia que tínhamos comido durante nosso tour por Moscou. Minha boca amargava, enquanto eu esperava ser saciada por uma xícara de chocolate quente em frente à lareira. Meus olhos se fecharam ao sabor da lembrança.
                Quando menos esperava, fui surpreendida pela visão de um idoso maltrapilho atravessando a estrada. Os faróis do carro iluminaram seu rosto de perfil, e ele cobria os olhos com as mãos em resposta à intensa claridade. Mas, ao contrário do que pensei inicialmente, minha mãe não diminuiu a velocidade, nem mesmo freou. Eu penetrei fundo em seus olhos através do retrovisor, minha mente tomada de pavor.
               — PARE! AGORA!
               Apertei forte seu braço direito, porém, já era tarde demais.
                O veículo se movimentou a um solavanco violento. De repente, nada mais parecia real e todos os elementos a minha volta não pertenciam mais àquele plano e, sim, a o de um pesadelo.
               Um cruel pesadelo.
               Que se concretizou quando ouvi os ossos do velho se quebrando. Seu grito rouco fora sufocado pelos frios e pesados pneus do carro. Sofrera graves ferimentos pelo corpo e, provavelmente, não duraria muito caso não fosse imediatamente encaminhado à emergência do hospital mais próximo.
              Assim que se libertou do corpo inerte, o carro voltou à sua velocidade inicial.
              Horrorizada, procurei por minha mãe. Precisava olhar para ela, alertá-la de que precisávamos salvar o homem que ela acabara de atropelar.
                — Mãe! PARA A DROGA DESSE CARRO AGORA! Não podemos deixar aquele idoso morrer! Eu vou chamar uma ambulância!
               Desci as mãos para o bolso da calça, em frenética busca pelo meu telefone celular.
               A reação dela me surpreendeu.
               — Quer que eu seja presa? — ela avançou ferozmente sobre mim, enquanto pisava fundo no acelerador; àquela altura já devia ter ultrapassado os duzentos e cinquenta quilômetros por hora.
             — Mãe, olhe para frente, senão iremos bater!
             Ela fez o que eu ordenara desesperadamente e, por sorte, foi capaz de desviar de um poste.
             Virei-me para trás, onde a vítima de seu repentino e impetuoso acesso de loucura jazia.
             Ele não estava mais lá.
             Seu corpo tinha desaparecido.
             Como isso pôde acontecer?
              Nada parecia mais em sintonia com relação ao Universo. Nada mais fazia sentido.
              Nada.
              E aquela mulher louca, quem era? Certamente não era minha mãe. Ela não mataria alguém à toa. E também não tentaria me matar.
             Certamente, o velocímetro explodiria a qualquer momento.
             Mas eu necessitava escapar...
             ... Apenas para salvar minha vida.
             Sem pensar em mais nada, com o coração acelerado e já encolhida pelo medo, decidi arriscar. Abri uma das janelas do carro. A mesma pela qual, minutos antes, eu observara o entardecer.
            Quantos minutos eram necessários para que alguém mudasse da água para o vinho?
             Apenas alguns.
             — O que você está fazendo? — seus olhos injetados de vermelho borbulhavam de ódio.
             Não respondi e nem me intimidei com sua expressão facial.
             Esperei encontrar algum indício de reconhecimento familiar nela.
             Nada.
             Respirei fundo.
             E pulei.
             Com o impacto que meus pés atingiram o chão, eu rolei pelo asfalto, ganhando algumas escoriações pelo caminho. Esses leves sangramentos arderam um pouco. Mas nada mais me deteria.
            Nada.
           Não sei por quanto tempo eu permaneci correndo. Não sei para onde aquele idoso gravemente ferido fora. Não sei se as minhas próprias feridas irão cicatrizar.
          Só sei que eu nunca mais vi aquela mulher de novo. E nem desejaria isso.
          Nunca mais.
            




terça-feira, 5 de abril de 2011

Hora em Vermelho



        Atordoada, desperto
                              Nada parece ser o mesmo
                                                                     Depois de suportar a madrugada,
                              Realizo-me em outra dimensão.

                                                                    A dor de cabeça
                               O corpo frágil
                                                                    Garganta sedentamente dolorida
                               Males quase inócuos

                                                                      Para onde foram, afinal,
                               As horas sagradas da noite?
                                                                      Sonhos que vazaram pelo espaço
                                Enquanto eu sonhava em  retornar ao chão.

                                                                       Vozes interrompidas
                                  Falas completas
                                                                       Mostravam-se competentes 
                                 Ao me transtornar

                                                                       Mas eu já não me lembro
                                    Já não me lembro de nada...
                                                                       Enquanto as cortinas turvas recobrem-me
                                   Enquanto os pesadelos atormentam-me...