sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Brand New World

                                  
   O calor escaldante do Sol  de janeiro era quase insuportável, mesmo para aqueles que já estavam acostumados com as altas temperaturas. Acostumar-se é um verbo que não existe no dicionário dos habitantes deste canto esquecido do mundo. Parece que há sempre algo sendo planejado por trás dos colossais muros de sangue, prestes a surpreendê-lo(a) ou devorá-lo(a).
   O motivo de minha ida até a praia não era lazer — nunca vi graça nenhuma em ter milhões de grãos de areia dentro do short ou do biquíni e entre os dedos e as unhas dos pés. Portanto, o litoral seria o último destino da minha rota de férias. 
   Refugiei-me debaixo de uma barraca branca com listras azuis. Dali, era possível se ter uma ampla visão do límpido e cristalino oceano. Por mais que fosse duro ter que admitir, eu gostava da praia. Pelo menos enquanto eu me transportava para a posição de espectadora, alheia aos acontecimentos. 
   Vestia uma camiseta larga e vermelha, short jeans curto e sapatilhas, só para que o meu encontro pudesse ser capaz de me identificar. Virei-me, de modo a avistar a cidade a minha volta, buscando um mísero sinal dela. 
    Localizei uma moça de pele alva, cabelos crespos e ruivos, sardas sobre o nariz e ao redor das bochechas. Também era alta e um pouco desengonçada, do tipo que, caso se descuidasse e falasse de mais, poderia ser morta a tiros de fuzil numa das esquinas ou becos dessa cidade sem lei. 
    Olhou para todos os cantos, uma mão acima do rosto, a palma virada para baixo, imitando a aba de um boné, de modo a proteger os olhos do Sol. Nossos olhares se encontraram em meio ao mormaço e ela abriu um largo sorriso ao me reconhecer, quase involuntário. 
    Aproximou-se de mim, ainda receosa. 
    — Boa tarde, eu sou a...
    Pousei dois de meus dedos sobre os seus lábios, impedindo-a de completar a frase. Cumprimentos e apresentações eram absolutamente dispensáveis.
    — Você trouxe a tinta? Eu preciso tingir meus cabelos... — passei os dedos pelos fios.
    Desta vez, ela não me respondeu em palavras. Limitou-se a mostrar a caixa com a tintura para cabelos, de marca desconhecida. Ambas sabíamos que meu interesse ali tampouco era mudar a cor natural de minhas madeixas. A estética não era  o assunto a ser tratado naquele dia. 
    Afastei-me da proteção da barraca de praia. Segui a jovem e caminhamos pela areia até chegarmos ao asfalto. 
    A ampla avenida cuidadosamente desenhada projetava-se diante de nós como uma horrenda pintura. Acompanhei os passos ligeiros da ruiva, e nos deparamos com um prédio absurdamente colorido, uma afronta ao cinza-escuro quase ditatorial que dominava a cidade. Ela fez um sinal para que parássemos ali e lançou-me um olhar de puro embaraço, enquanto retirava um molho de chaves do bolso da calça e abria a porta branca da entrada principal. 
    Já dentro do edifício , encontrei-me em corredores estreitos de mais para que duas pessoas   pudessem andar uma do lado da outra. Deixei que ela fosse na frente, uma vez que aquela era sua residência. 
    Ela me conduziu pelo interior do prédio, transitamos pelos corredores e escadas que davam acesso ao subsolo. Identificou seu apartamento, era uma das últimas portas. 
    Desperdiçamos preciosos segundos abrindo todas as trancas que, aparentemente, transmitiam a sensação de segurança para quem estava dentro do cômodo, atrás daquela frágil porta de madeira. Entretanto, tínhamos consciência de que tudo aquilo possuía caráter ilusório: os cadeados e as complexas combinações jamais seriam suficientes para nos proteger das mãos assassinas do governo e do sistema instaurado. Muito menos dos bandidos que tocavam o terror após o toque de recolher. 
    Assim que a porta foi aberta, corremos para entrar, temerosas. Acabamos nos chocando uma contra a outra, o que ocasionou um atraso de 2 segundos no tempo que deveríamos levar para entrar. Cada milésimo de segundo podia ser o último. 
    O apartamento da moça ruiva bem poderia ser chamado de apertamento, pois era só um cubículo. Como alguém poderia viver ali?
    Na realidade, o espaço era equivalente a um quarto pequeno e havia sido preenchido com uma bicama, um criado-mudo e um guarda-roupa. As paredes eram tão coloridas quanto a fachada do prédio: uma tentativa fracassada de ressuscitar a alegria há muito perdida. 
    A jovem pediu gentilmente que eu me sentasse na cama de baixo, o que eu prontamente fiz, após encontrar certa dificuldade, o chão era escasso ali. Ela preferiu ficar de pé, tamanha apreensão. Ali, longe das câmeras que nos perseguiam por cada esquina, cada poste, cada árvore, cada loja... Estávamos rodeados delas, sendo monitorados 24 horas por dia.  Cada movimento poderia ser mal-interpretado. Só presos dentro de nossos próprios casulos é que poderíamos nos sentir realmente seguros. Ou não. 
    A sorte, a única esperança (chame do que desejar) era que as escutas ainda não haviam sido instaladas dentro das casas. Quando essa hora chegar, não poderemos mais abrir a boca. O controle. O poder. É isso que eles querem... E estão conseguindo, a passos largos, além de esmagar nossas expectativas de futuro com seus pés gigantes. 
    Ela fez um sinal para que eu começasse a falar, incentivando-me a não sentir medo. Eu hesitei. No instante em que notei que ela estava prestes a desanimar, soltei:
    — Seu filho...
    Mal terminei de falar, a jovem desmoronou, aos prantos. A sonoridade de suas lágrimas não provocaram nenhuma emoção em mim. É como se nada fosse real ou talvez eu estivesse apenas imersa num mundo que permanecia acima da minha capacidade de compreensão. Resolvi ser o mais prática possível. 
    — Ele está nesse endereço. —  mostrei-lhe o papel com o nome da rua escrito em letras grandes e legíveis, certa de que ela enxergaria. Ainda com lágrimas nos olhos, ela leu o endereço e assentiu.  — Vá, antes que seja tarde demais. —  acrescentei, procurando expressar algo parecido com a dor. 
    — Eles estão nos matando... —  ela murmurou, enxugando os olhos. 
    — Não. É bem pior. Eles querem que matemos uns aos outros. 
    Repentinamente, fui envolvida pelo seu abraço desesperado. Retribuí, esperando não parecer tão fria quanto eu era. 
    Ouvimos passos vindos do lado de fora. Ela se distanciou de mim e rapidamente alcançou a porta. Espiou pelo olho mágico. 
    — Oh, meu Deus! 
     Isso só podia significar uma coisa:fiscais do governo. Mas o que eles levariam dali? Ela não tinha dinheiro escondido, tinha? Porque, se tivesse, era certo de que a nossa certidão de óbito já havia sido impressa. E a morte seria só o começo. 
     Eu não ousava imaginar o fim. 
     Subi em cima da cama e apressei-me em abrir a janela. Até eu perceber que não havia janela nenhuma ali. No lugar dela, um gigantesco quadro de Frida Kahlo, Diego en mi pensamiento. E eu que pensava que Piet Mondrian fosse mau gosto. 
      — Tira o quadro, rápido! — ela estava quase se mordendo para não gritar.
      Fiz o que era ordenado e, para minha surpresa, havia um estreito túnel atrás do quadro e não um cofre. Olhei novamente para a moça, perguntando-me o que devia fazer então. 
      — Fuja!
      — E você?
      — Eu vou ficar bem, fuja!
      Enfiei-me no túnel, mesmo sem ter um porte atlético. Os primeiros três metros foram dificílimos de atravessar. Eu era como uma minhoca na terra, não sentia braços nem pernas.  Não via nada além da escuridão. Continuei seguindo em frente, até que a largura do túnel aumentou consideravelmente, sendo possível movimentar os membros, tanto superiores como inferiores. Embora estivesse praticamente cega, corri na velocidade da luz. Meus pés mal tocavam o chão de terra molhada. 
     O túnel terminava em um beco, iluminado pela fraca luz de um poste. Ao longe, pude ver a jovem ruiva e os fiscais do governo.  Imediatamente, escondi-me atrás de uma saliência de um dos prédios caindo aos pedaços. Mal ouvia o som da minha própria respiração, esforçando-me ao máximo para escutar o que estava se passando a minha frente. 
     — É ele sim! — a mulher gritou, novamente deixando a emoção transparecer na voz. —  Por favor, não o matem! 
     — Já revistaram a pocilga onde ela mora? —  o homem que parecia ser o "líder" da operação perguntou a um de seus companheiros ,que carregava um objeto envolto em uma lona, ambos ignorando os suplícios da mãe. 
     — Sim, senhor. Não há nada além desse quadro. —  ele retirou a lona e mostrou o quadro ao outro. 
     —  Que droga! E eu pensava que aquela pintura com os retângulos coloridos fosse de um tremendo mau gosto. Quanto será que isso vale?
     —  Não muito. Parece que é falsificado. E uma falsificação bem barata. E pesada. 
     — Já que não tem nada a não ser isso... Eu acho que essa sua arte ainda pode nos fazer uma boa coisa.  
     Dizendo isso, o líder tomou o quadro nas mãos e começou a batê-lo contra a moça ruiva. 
     O primeiro golpe foi na cabeça. O impacto fora tamanho que a tela se rasgou. O rosto dela correspondia ao de Frida Kahlo agora. Só que ensanguentado.  Os homens riram. Não contentando-se com o estrago já feito, puseram-se a desferir socos e pontapés contra ela. O sangue escorria pelo beco sombrio. O único som que se ouvia eram as sonoras  e mesquinhas gargalhadas, recheadas de maldade. 
     Engoli em seco.
     O sangue da jovem percorreu toda a rua, até se aproximar bastante de mim. Deixei que uma gota tocasse na ponta de minha sapatilha. Era o preço da covardia. Ter seu sangue aos meus pés. 
     Sem fôlego, segui por outro beco próximo, sendo este mais iluminado. Cambaleei por alguns instantes, tonta devido ao cheiro do sangue. Mas nada pesava mais do que o remorso. 
     Ela estava certa. 
     Eu estava errada. 
     Eles não querem que matemos uns aos outros. Preferem se encarregar eles mesmos dessa sórdida tarefa. 
      Eles estão mesmo nos matando. 


      
     
      
     


     
      


    
 

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