sexta-feira, 15 de julho de 2011

O pássaro profeta




Dia após dia foram traçadas
Vias imaginárias
Escapatórias ilustres e planejadas
Para minhas fugas diárias. 

Não por ninguém e,sim, por mim
Deparei-me com a visão de liberdade
Era meu destino ser assim
Embora contra a própria verdade. 

Despedaçado, dilacerado em lacres
Cristal por cristal
Joias fartas e medíocres 
Que construíram minha Catedral.

De deslumbrantes ilusões
Se baseou o meu Império
Traí sonhos e emoções
E levei fracassos a sério. 

Percorri luas e planetas decadentes
Implorei em frente aos portões do Céu
Esperanças minhas, infundadas e descrentes
Voavam com as pombas ao léu. 

E parto, agora, por um caminho infinito
Ainda que não atinja minha meta
Porque o mundo nunca será mais bonito
Do que perante os olhos de um menino poeta. 



domingo, 3 de julho de 2011

Ensaio Sobre a Sétima Arte

                                                                                          
                                                      Federico Fellini, cineasta italiano
        Luzes.
        Câmera.
        Ação.
        A trilha sonora se inicia, traçando sequências inusitadas e, ainda assim, espetaculares, de notas musicais. O cenário projetado se adapta a ela, enriquecendo-a com matizes impressionantes de cores já há muito conhecidas. Não só as cores, como também, a iluminação dão o ar da graça na tela, podendo consagrar a cena ali descrita ou simplesmente arruiná-la.
        Surgem seres de beleza sobre-humana, cujas faces fulguradas convertem-se nas mais variadas expressões em um só tempo. A fala clara e poética encanta, ouvem-se suspiros e mais música. Embora o encanto mobilize restritas multidões em salas escuras, a cena ali retratada é de natureza prosaica. Vêm-se essas conversas e personagens em situações corriqueiras. O que prova que a vida, por si só, é uma arte.
        Arte ampliada pelas lentes das câmeras de indivíduos notadamente habilidosos. Magos que, com o auxílio de seus instrumentos típicos, transformam o ordinário em esplêndido, o incomum em inovador, e o dramático em belo. Enxergam além da imagem, veem tendências para o futuro. Dons quase sobrenaturais.
        Despertam os mais obscuros desejos e sentimentos, provocam lindas emoções. Ensina-nos a rir, a chorar, a se arrepiar, a borbulhar de ódio e, principalmente, a sonhar.
        As luzes se apagam.
        Aplausos irrompem por toda a sala ao final da projeção. Todos os presentes, de pé.
        É o Cinema.
        





domingo, 26 de junho de 2011

Presentes


        Aconteceu numa dessas tardes ensolaradas e úmidas, cingidas pelo cheiro de grama, que se torna mais forte quando se está no campo, como era o caso. O dia não importa, uma vez que os dois pequenos curtiam seus últimos dias de férias e todos sabem que, durante as férias, todos os dias parecem iguais. Não havia segunda-feira que implantasse o mau-humor e nem domingo que não tivesse um piquenique após a missa na Igreja de Santo Antônio.
         Tomás e Marília contavam 10 e 11 anos e, até o momento, não haviam frequentado escola formal. Alfabetizados aos 5 anos pela mãe, professora primária, foram educados em casa até concluir o equivalente ao 5º ano do Ensino Fundamental. A partir daí, graças aos tios, que moravam na cidade grande, eles continuariam seus estudos num dos melhores colégios do país, com o auxílio de bolsas integrais. A mãe, com o coração apertado, arrumava as malinhas dos meninos, pois, dali a uma semana, os tios viriam buscá-los e, a partir daí, eles morariam juntos no centro da cidade. O que, certamente, poria fim ao lazer dos dois.
         Contudo, a tarde era bonita demais para ser desperdiçada pensando na escola. Especialmente num lugar belo e pacato como aquele, onde pássaros raros seguiam reto pelos bosques da primavera até atingir os riachos de verão. O Sol participava ativamente do festival da natureza. Talvez por se considerar a estrela maior do espetáculo, proibira todas as nuvens de ficarem próximas a ele, para que seu esplendor e sua graça incomparáveis não fossem ocultados.
         E foi justamente nesse cenário — que se torna perfeito caso se acrescente uma confortável casa em meio a um prado verdejante, um imenso quintal, um vovô sentado numa cadeira de balanço, situada na varanda dessa casa, e três ou quatro galinhas correndo no quintal — que Marília e Tomás receberam a caixa.
         A caixa, assim como notícias de parentes distantes, chegou através do correio. Ao anúncio do carteiro, as crianças prontamente atenderam. A princípio, a ansiedade e a excitação dos irmãos só permitiam que lhes ocorresse que a caixa provavelmente vinha de seus tios.  Já o carteiro fazia outra ideia: não havia remetente.
        Ignorando a imperplexidade das crianças, o carteiro prosseguiu:
        — A mãe ou o pai de vocês está em casa?
        — A minha mãe está fazendo o almoço — Marília respondeu — Por quê?
        — Eu preciso que ela assine este comprovante de recebimento da entrega. — o funcionário dos correios ergueu uma prancheta com alguns papéis e uma caneta.
        — Tá bom. Vou lá chamar ela. — a menina percorreu o caminho feito de pedrinhas que conduzia até a entrada da casa e seguiu para a cozinha. O irmão caçula não hesitou em acompanhá-la, carregando consigo a caixa.  
         Ao ouvir o som dos chinelos pequeninos dos filhos em contato com o piso de mármore da entrada, a mãe virou-se para ouvi-los, enquanto mexia o feijão na panela com uma colher de madeira.
         — O que houve, anjinhos? — ela segurou o rosto de Marília entre as mãos, emoldurando-o com os lindos cabelos cacheados da menina.
         — O moço dos correios quer falar com a senhora. Alguém mandou isso aqui para a gente — Tomás apontou para a caixa.
        — Quem?
        — Nós não sabemos, não veio nome de ninguém, só o nosso. — disse Marília. — Podemos abrir?
        A mãe franziu o cenho, desconfiada.
        — Podem — respondeu, insegura. — Eu vou ver isso já, já. — e saiu ao encontro do carteiro.
        Os meninos correram para a sala.
         Marília abriu uma das gavetas da cômoda da sala, onde a avó guardava seus materiais de costura, vasculhando tudo atrás de uma tesoura. Ao consegui-la, foi logo se encarregando de cortar o barbante preso ao pacote e Tomás completou a tarefa, ao rasgar o papel que cobria a caixa.
        Ao abri-la, os irmãos se viram em contato com um passado mágico.
         Fotografias amareladas e gastas pelo tempo, lápis de colorir, um pequenino caderno de desenhos, um pião, um estilingue, uma série de cartões postais presos com uma fita de seda vermelha e muitas, muitas histórias a serem contadas.
         — Olhe, é o vovô! — Marília apontou para uma das fotos, onde um garotinho com os cabelos escuros penteados para trás, de camisa branca e short com suspensório, andava de bicicleta. Ela só pôde reconhecê-lo graças a algumas anotações do verso do papel, que incluíam a data de quando o retrato fora feito, e o nome de seu avô. De outra forma não seria possível, as crianças nunca haviam visto nenhuma daquelas fotografias.  
        — Puxa, já existia câmera fotográfica nessa época? — Tomás maravilhou-se.
        — Ah, Tomás, deixa de ser bobo! O vovô não é tão velho assim.
         A fotografia seguinte também retratava o avô dos meninos, na faixa dos 20 anos, em frente a um prédio altíssimo, vestindo terno e gravata. No canto direito inferior, o local onde a fotografia fora tirada: Centro – Rio de Janeiro (RJ).
         — Este é um verdadeiro arranha-céu, não é, Tomás? — Marília apontou para a foto.
         — Só pode ser. Na cidade, deve ter um monte desses. É por isso que chove tanto...
         — O que os arranha-céus têm a ver com a chuva?
         — Bom, já que esses prédios arranham, o céu deve sentir uma dor danada! E é por isso que ele chora...  As gotas de chuva são as lágrimas do céu...
        A ingenuidade do irmão divertiu Marília. Quem sabe o menino não tinha uma veia poética?
         As crianças continuaram com a investigação. Quem será que havia lhes enviado a caixa? Alguém próximo a seu avô, provavelmente, a julgar pela quantidade de fotos dele. Mas... De quem seria aquele caderninho de desenhos? Tomás resolveu pegá-lo para si, só para conferir se as pinturas infantis lhes forneceriam algumas pistas de seu dono.
         A maioria dos desenhos tentava reproduzir, permeados de traços infantis, a casa onde moravam. Alguns deles, devido a alguns borrões e erros, nem haviam sido contemplados com os riscos de lápis de cor. Outros, por sua vez, muito bem-feitos, ganhavam vida onde predominavam as cores amarela, vermelha, azul e verde.
         Na última folha do caderno, uma singela mensagem. E não em caráter pessoal, e, sim, para todos os que querem viver e não apenas existir.
              O grande homem é aquele que não perdeu a candura de sua infância
                                                                                     Provérbio chinês
         Abaixo, mais um recado, desta vez, destinado diretamente às crianças:
         Espero que vocês nunca se esqueçam de quem vocês são realmente. Por mais que estejamos longe uns dos outros, gostaria que vocês mantivessem a simplicidade e a inocência natural das crianças. Sei que isso é difícil, principalmente para aqueles que vivem na cidade (para onde vocês irão daqui a uma semana), onde os monstruosos avanços tecnológicos inibem a criatividade.
       Não deixem que os arranha-céus da vida escondam o brilho de vocês e os envergonhem de seus sonhos. Mas, se um dia,  as ruas da cidade parecerem ferozes demais para vocês, lembrem-se que o seu velho povoará para sempre seus corações.
                                   Com amor,
                                       Vovô
         Tomás e Marília se encaminharam até a varanda e pularam no colo do avô, felizes por descobrirem quem havia lhes enviado a caixa e, acima de tudo, conscientes de que não esqueceriam nunca aquela barba branca, as bochechas coradas e os olhos castanhos tão especiais.  
                           

         


quinta-feira, 16 de junho de 2011

Fragrâncias Noturnas



         Era diamante.
         Papéis, vasos, rosas, veludo, tapete, ouro, vinho, cristal.
         E água.
         Dançavam e comemoravam na magia da casa a chegada da chuva.
         O relógio, preguiçoso, concluíra o movimento de seus ponteiros, que marcavam 1h30 da manhã. O momento, é claro, há muito já transcorrera. Mas, durante a madrugada, tudo é eterno.
         A decoração moderna da sala de estar não ocultava a melancolia ainda presente na casa.
         A chuva se intensificou.
         Tempestade.
         Os cômodos, loucos por apoio uns dos outros, acendiam e apagavam suas respectivas luzes, alternadamente. A sala acendia a luz do abajur, como se enviasse uma mensagem para  a cozinha, para que esta ficasse calma e desse um jeito de fechar sua pequena janela, e evitar que a mesa de jantar ficasse encharcada.
         E então, definitivamente, toda a claridade proveniente das lâmpadas desapareceu.
         O escuro expulsou a luz a pontapés.
         Os tiros d’água eram violentamente disparados contra a porta de vidro da varanda. As formas das plantas, subitamente iluminadas por um relâmpago, entre severas rajadas de vento, pintavam um cenário de horrores diante da casa solitária e assustada. Aquela que outrora oferecera proteção, agora, reduzira-se ao mínimo, mera obra-prima dos homens. Revelava-se incompetente em suas tarefas primordiais, especialmente para os seus donos, que a construíram à base de muita inspiração e nenhuma transpiração.
         Todos os móveis agregaram-se na sala, ignorando o perigo iminente.
         As  águas invadiram a entrada principal, afogando tudo o que vinha pela frente, sem pudor nem piedade. Seu encontro com os móveis se deu de forma lenta e agonizante. Ultrapassadas as barreiras de início, foi a vez de a pesada porta de mogno ceder.
         Sem chances.
         Sem lugar para onde ir.
         Estragados, cheios, afogadas, encharcados, enferrujados, aguados e cada vez mais brilhantes.
         A água sorvia as peculiaridades de cada artefato ali presente e não mais viventes. O jogo de cores violento transformava-se em um anacrônico e torturante círculo de imagens. Um majestoso Mussorgsky dava o ar da graça, fazendo-se ouvir acima do refrescante ruído das águas. Quadros, não pintados à óleo, e, sim, de materiais variados, seguiam sua ordem perfeita na inóspita exposição.
         O ritmo dos fenômenos naturais e materiais desacelerou, após uma série de figuras em sequência não linear.
         Após a tempestade, vem a bonança.
         Única tranquilidade sobrevivente, as damas-da-noite exalavam seu suave e adocicado perfume, unindo-se às demais fragrâncias noturnas. Era o aroma da esperança para um lar recém-dilacerado.  

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sombras






           Meus olhos se abriram em meio ao choque denso entre devaneios e realidade. Um gesto quase mecânico, movimento involuntário que comunicava o perigo iminente por volta das dez da manhã.
           O porão dos meus vizinhos, parcialmente destruído, desistira de se reerguer após o caos gerado pelas bombas lançadas contra o Centro da cidade na noite anterior.
            Levantei-me prontamente do chão e comecei a procurá-los. Subi as escadas em direção ao que antes havia sido a sala de estar do casal amigo dos meus pais, que gentilmente aceitaram que eu me refugiasse lá, junto deles. Como eu tinha mais três irmãos, minha mãe achou melhor que todos nós nos escondêssemos em lugares diferentes; uma vez que, dessa maneira, seria improvável que todos morressem, o que fatalmente ocorreria caso a família inteira resolvesse se abrigar no pequeno apartamento onde morávamos há quatro anos, pouco antes do início dos conflitos.
           Minhas esperanças morriam à medida que eu avançava nos degraus. Era óbvio que, se o porão se encontrava naquele estado deplorável, a situação do resto da casa seria ainda pior.
           E eu nem imaginava o quanto.
           Antes que eu pudesse avistar as ruínas da casa, um pequeno espelho caído num dos degraus da escada já me preparava para o que eu podia encontrar. Ao ver meu reflexo ali, recuei um ou dois degraus, reprimi um grito e levei uma das mãos à boca. Eu me vi completamente coberta de poeira e me perguntei como não havia percebido aquilo antes. No momento dos bombardeios, sempre me diziam: “Por tudo que é mais sagrado, jamais abra os olhos!”. E eu sempre obedecia. E eu não tinha certeza se aquilo era apenas para proteger a minha visão ou também o meu coração.
           Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, um fio de pureza entre as escórias. Ela era simplesmente uma afronta ao restante do meu corpo. Não ousei secá-la. Era o meu troféu.
            Imediatamente, reuni todas minhas energias possíveis para sair do porão e começar a busca pelos meus familiares e amigos, que ainda deviam estar soterrados entre os escombros das construções.
            Mas não foi o que eu vi  que me destruiu por dentro.
            Foi o que eu senti em seguida.
            A casa dos meus vizinhos simplesmente não existia mais. Tudo o que lá havia: eletrodomésticos, móveis, roupas, alimentos, livros, CDs, todo o trabalho de uma vida, extinto.
            Os prédios ao redor eram só uma série de amontoados de concreto desordenados. Inclusive aquele onde antes eu habitava.  Os danos materiais não eram nada comparados a...
            Meu pensamento esvaiu-se pelos ares poluídos.
            Ninguém da minha família estava ali. Sequer conhecidos meus. Caminhei pelas ruínas, passei por cima de muitos cadáveres. Só, cadáveres, eu não tinha lágrimas suficientes para eles. Eles estariam ali, cedo ou tarde.
            O sopro dos anjos veio, congelante, tornando minha missão ainda mais tortuosa e pungente. Eu estremeci, enquanto aconchegava-me no meu casaco velho e puído.
            A disposição das nuvens me sufocava.
            Uma pomba, alheia a todos os acontecimentos em terra, sobrevoou os estragos. Acenei para ela até não ser mais capaz de distingui-la entre a brancura imaculada do Céu, o reino ao qual a ave pertencia. Ela se limitou a seguir o próprio caminho ao não compreender meus apelos.
            Depois de incontáveis minutos de procuras infrutíferas, debaixo de parte de uma parede, vi uma mãozinha de bebê, que levava uma pulseira banhada a ouro com um nome gravado.
            Clara.
            Minha irmãzinha.
            Eu urrei.
            Ninguém me ouviu. 





domingo, 29 de maio de 2011

Sangue Negro





           — Aceita mais uma dose de uísque, senhor?
           — Não, obrigado.
           — O senhor está esperando alguém?
           — Estou sim. É um amigo meu... — respondi, entediado, enquanto olhava rapidamente para o relógio de pulso. — E ele está atrasado... Tomara mesmo que ele tenha um bom motivo para isso... — senti meus músculos enrijecerem.
            O barman assentiu distraidamente, concentrando-se em preparar a bebida de outro freguês, que havia acabado de se sentar ao balcão, a cinco bancos de distância. Estava acompanhado de uma loura exuberante que sussurrava obscenidades ao pé do ouvido. Uma prostituta, a julgar pela qualidade de suas roupas. A beleza vulgar perante a imponente maturidade do homem constituía o mais grotesco dos contrastes. A aliança no dedo dele revelava seu patético gesto de infidelidade.
            O que um ser humano não é capaz de fazer por dinheiro? Submeter-se a mais imunda e abjeta gente, expor a todos suas chagas morais, estar à mercê de inimagináveis desventuras; para, só assim, sustentar sua medíocre existência?
            Eu sempre soube, mais do que muitos, o que alguém faz para ter acesso a uns trocados a mais. E era por isso que eu estava ali. Pelo dinheiro.
            Por causa do maldito dinheiro.
            E eu não sairei daqui sem ter minha grana de volta.
           Quem aquele infeliz pensava que fosse, ao me deixar plantado num bar, com os olhos vermelhos e cansados e cheirando a um bêbado encardido? Se ele demorasse mais meia hora, eu iria socá-lo e...
           Sacudi a cabeça, tentando me desvencilhar de pensamentos que só me deixariam furioso e estressado. Ocupei-me de contemplar a decoração do local e de absorver a atmosfera do fim de noite. As luzes de neon dominavam o contorno das prateleiras onde ficavam as garrafas de bebidas. Os bancos eram de couro vermelho. Pôsteres de grandes estrelas do cinema e da música dos anos 1950 e 1960 eram iluminados por molduras de pequenas lâmpadas amarelas. Um letreiro arroxeado, também de neon, pendia acima do palco, com os dizeres Jazz Bar. A não ser pela iluminação proveniente das lâmpadas espalhadas, o bar estava no escuro.
           Havia uma banda de jazz tocando ao vivo para meia dúzia de pessoas. Não que o bar fosse decadente, e sim porque já devia passar de uma da manhã. Em tempos como aqueles, não se costumava ficar até tarde na rua. A madrugada de sábado para domingo saboreava-se ao som do sax e de algumas notas do piano ao fundo.
           O ambiente era perfeito. Deixei-me levar pelo som de Charlie Parker.
           No instante em que os músicos começaram a tocar All the things you are, ele entrou no bar.
           Estava pálido e encharcado. Com o alto volume da música, eu nem percebi que chovia torrencialmente lá fora. Seus olhos escuros se encontraram com os meus. Ele congelava por dentro, visivelmente abatido por me encontrar ali, mesmo tenho certeza de que eu estaria ali, de qualquer forma.
           Sentou-se no banco ao lado do meu, e logo começou com suas tolas explicações.
           — Olha, antes de tudo, eu preciso que você entenda que...
           — Eu já te dei tempo o suficiente — respondi, seco. — O que houve dessa vez?
           — É que surgiu um imprevisto. Eu atrasei no pagamento da pensão alimentícia para minha ex-mulher e tive que pagar, senão, eu iria para a cadeia e...
           — Ah, quer dizer que você quase foi preso! — interrompi. — Não sabe a angústia que me daria ver um de meus melhores homens na cadeia! — dei-lhe um tapa nas costas. — E tudo por causa de uma vagabunda que acha que tem direito sobre os seus bens...
           — Não! — redarguiu, trêmulo. — Nós temos uma filha juntos e, como ela mora com a mãe, bem, eu devo fornecer a ela o melhor que eu puder.
           — Não se preocupe com isso, filho. — eu sorri para ele. — Pode me pagar quando puder. Enquanto isso, tome um drink. — apontei meu copo para ele. — E esse é por minha conta...
           — Ob-Obrigado. — ele desconfiava de minha repentina simpatia, visivelmente apreensivo. Podia ser tudo, mas não era burro. — Mas... Eu tenho que ir agora.
           — Não se vá. É tão tarde que chega a ser cedo... — disse, rindo.
           — Desculpe, eu não posso ficar mais tempo. Minha menina veio passar o fim de semana comigo, e eu a deixei dormindo sozinha no meu apartamento. Se ela acordar e não me ver lá... As coisas vão pesar bastante para o meu lado. — ele respondeu, levantando-se do banco.
           — Já que é assim, eu vou acompanhá-lo. Você quer uma carona até o seu prédio?
           — Não, não precisa. Eu pego um ônibus.
           — De qualquer forma, eu vou com você. — peguei minha carteira, retirei cinco pratas de lá e coloquei-as em cima do balcão, como pagamento pela minha dose dupla de uísque. Levantei-me do banco. Saímos do bar.
           Àquela hora da noite, a chuva já havia parado, o céu estava límpido como nunca, e sem estrelas.  Alguns carros velhos estacionados na calçada em frente ao bar pareciam não ter dono. Eu deixara o meu num beco atrás do bar, distante dos outros. Aquele otário, obrigatoriamente, passaria por ali para chegar até o ponto de ônibus. Que incrível coincidência, não?
          Seguimos andando pela rua. Demorei-me alguns momentos, ficando a poucos metros atrás dele. Ele já estava decidido a ir embora, como se não houvesse mais ninguém ali.
          Entretanto, ele era só um infeliz entre tantos outros que já fizeram inúmeros empréstimos comigo. E que não pagaram. Uma coisa que eu não suporto em pessoas necessitadas é a incrível habilidade que elas têm de provocar-lhes compaixão. E, assim, conseguem tudo o que querem. Fazem promessas vazias, pedem piedade.
          Obviamente, não se deve acreditar nelas. Faz parte de seu teatral disfarce.
          Elas têm o poder de te deixar impotente, como aquela prostituta no bar.
          O imbecil me deixou numa posição tão ruim quanto a daquela vadia!
           Saquei meu revólver de debaixo do paletó.
           Ele continuava caminhando, em câmera lenta, como se nada fosse...
           Apertei firme o gatilho.
           Um primeiro tiro.
           Dois.
           O sangue negro jorrou pela sua camisa social.
           Pelas costas.
           E acabou.
           A lua sorriu. Era crescente.  
           A noite era bela. 



sexta-feira, 27 de maio de 2011

Mr. Succeed


Tão logo subiu um degrau
Trata, pois, a todos tão mal 
Não se sabe o que lhe fizeram 
Ou o que lhe disseram.

Talvez seja assim 
Sua tola ascensão enfim 
Lhes mostrou quem era 
E o que se espera de si. 

Seu dia-a-dia 
         Quem diria 
 [por fim 

Compreende Sartre 
Avalia Delaunay 
E contanto que escute Vivaldi 
Está tudo bem...

O mundo pode aguardar 
Até o baile começar
A cidade pode explodir
E ele pretende assistir 

Seu dia-a-dia 
        Quem diria 
 [por fim 

Lê Faulkner 
Aprecia Dalí 
E enquanto ouve Beethoven 
Não está nem aí